Biosofia nº 2

3.50

Categoria:

Editorial

Vida e Sensibilidade – o respeito pela dor

No passado mês de Março, a Senhora deputada Rosa Albernaz apresentou na Assembleia da República um projecto de Lei no qual se consagrava a garantia de alguns “direitos dos animais”.

Foi uma atitude nobre e corajosa que, desde aqui, nos permitimos saudar. Essa nobreza e essa coragem volveram-se ainda mais evidentes ao constatar-se que tal iniciativa, além de não ter sido alvo de especial popularidade – pelo contrário, quase diríamos –, foi ainda objeto de comentários, sorrisos e subentendidos que, por vezes roçaram uma grosseria (para não falar numa pura e simples insensibilidade…) que não seria de esperar em pessoas consideradas cultas e inteligentes, a começar por muitos dos seus colegas de hemiciclo e prolongando-se por vários “fazedores de opinião”.

Comentou-se amiúde que não se compreendia como, havendo tantos problemas a resolver, se gastava tempo com uma questão menor, desnecessária ou, pelo menos, não prioritária. Afirmou-se que bom seria que aquela deputada dedicasse a atenção a causas de direitos humanos em vez de se preocupar com direitos dos animais. Expressou-se indignação (!) com a existência do projecto ou procurou-se remetê-lo ao domínio do anedótico. Obviamente, uma outra parte da opinião pública manifestou respeito e simpatia pela iniciativa – não estamos assim tão mal…

No hemiciclo de S. Bento, o Senhor deputado Barbosa de Melo, Professor de Direito, invocou argumentos de doutrina jurídica para afirmar, em consonância com os argumentos utilitários, filosóficos (?!), humanistas (???!!!) e até moralistas (???!!!…) de outros representantes da nação, para proclamar, em síntese: “Os animais não têm direitos”. Fundamenta-se este princípio no facto de não terem – os animais – a dignidade da pessoa humana. Enquanto isto, alguns deputados (no exercício pleno da referida dignidade humana…) afinavam graçolas, trocavam bilhetes e olhares de cumplicidade e submetiam ao odioso do ridículo a iniciativa da colega (de bancada ou não).

Até o ex-ministro e ex-deputado António Barreto, que tantas vezes se destacou pela sensatez das suas opiniões, achou por bem escrever, em artigo de opinião publicado no jornal “Público”, na sua edição de 21 de Março: “Mais um projecto fracturante. Desta vez, foi o da defesa dos direitos dos animais. Assim se perde tempo (…) Direitos dos animais? Raramente ouvi tamanha imbecilidade. Não haverá ninguém que afirme claramente que os animais não têm direitos? Que os direitos são uma criação humana, para uso da espécie humana, tendo como beneficiários os seres humanos? (…) Não é por causa dos animais que condeno a violência sobre eles praticada.”

Pela nossa parte, não podemos deixar de reafirmar a nossa solidariedade com a iniciativa da Senhora deputada Rosa Albernaz, de lamentar o modo desumano – por insensível e indigno – como foi tratada por alguns sectores e, enfim, de tecer algumas considerações deliberadamente sintéticas.

A preocupação com os problemas mais graves não é impeditiva de se dar atenção a outros de menor importância. Toda a prática quotidiana – individual e colectiva – é disso demonstrativa. Existem pessoas na miséria e nem por isso se deixam de construir auto-estradas e aeroportos. O crime de homicídio é punido no Código Penal mas igualmente o são crimes de menor gravidade. Acaso a consagração dos direitos dos animais prejudicaria a resolução de algum (outro) problema importante? De resto, ficou bem patente que a deputada que apresentou o projecto se ocupa com muitas causas humanas – porventura mais do que alguns dos seus detractores de ocasião… – sendo puramente demagógicas as acusações que em sentido contrário lhe foram imputadas. (Da mesma forma, ao lado deste editorial, incluímos material da Amnistia Internacional, organização insuspeita de indiferença perante a nobilíssima causa dos direitos humanos).

O argumento de se “perder tempo” é ofensivo da nossa inteligência. Com quantas outras coisas, essas sim menos dignas, se não gastou já tempo no Parlamento? Não queremos ser demagógicos e evitaremos referências aos privilégios e prerrogativas que os senhores deputados a favor de si mesmos vêm aprovando, visto aceitarmos que se deve salvaguardar o prestígio inerente a funções de responsabilidade. Por isso, limitar-nos-emos a perguntar: não se tem perdido tanto tempo com ataques pessoais e jogos de retórica? Não se vai perder tempo com a discussão de três – três, meu Deus! – projectos permissivos dos “touros de morte”?
Não duvidamos de que, se os animais votassem, a ideia teria sido recebida com muito mais respeito e os seus promotores não teriam sido sujeitos a vexames ou a acusações de imbecilidade. Receamos que a defesa de causas consideradas nobres seja, em muitos, nada (ou pouco) mais do que um verniz exterior e uma conveniência político-social-eleitoralista.

Bem triste é que a iniciativa de se minorar (inúteis) crueldades impostas aos animais seja considerada ridícula e imbecil – e, na verdade, é triste do ponto de vista estritamente humano. Com efeito, em nada sai beneficiada a proclamada “dignidade da pessoa humana” com manifestações de insensibilidade e de indiferença à dor de seres vivos, dotados de uma natureza psíquica suficiente para poderem sofrer – e alguns, até, para sofrerem solidariamente com a dor de seres humanos a que se afeiçoam. Nessa negligente indiferença, vemo-nos obrigados a incluir os que “despacham” o assunto com impossibilidades jurídicas, numa atitude a meio termo entre o desinteresse e o sofisma. O cerne da questão é, justamente, esse: (in)sensibilidade à dor. Estamos, assim, perante um problema humano (nisto, chegamos quase a coincidir com António Barreto), e deveras importante.

A vida não é posse exclusiva do ser humano. Nem “posse”, nem “exclusiva”. Em outros seres para além dos humanos, essa vida chegou a alcançar uma sensibilidade capaz de englobar a dor, o sofrimento e, inclusive, a ansiedade – essa que faz com que, nas filas dos templos da brutalidade humana a que chamamos matadouros, os animais gritem e chorem intensa e horrivelmente (falamos em termos literais), face à iminência do seu destino.

Ignorar ou fingir que se ignora isto, desumaniza-nos e torna-nos autores ou cúmplices de crimes – contra a sensibilidade – que, evidentemente, muitos animais seriam incapazes de praticar. Ignorar que partilhamos com os animais a susceptibilidade da dor ou, pior ainda, não o ignorando, continuarmos a permitir-nos infligir-lhes essa dor de modo livre, gratuito e ilimitado, constitui (para nós) um estúpido complexo de superioridade e uma prepotência que fazem lembrar os tempos em que se discutia se as mulheres ou os africanos também eram dotados de alma e titulares de certos direitos…

Entretanto, não ignoraremos o argumento jurídico, procurando, interessada e insofismadamente, uma solução. Voltamos a citar o Engº António Barreto: “…todos os direitos implicam deveres e não se vê como poderão os animais ser titulares de uns e de outros”.

Pois bem, tomemos a questão de outro ângulo. Ninguém negou (pelo contrário, foi exaustivamente evocado) que os homens têm direitos sobre os animais. E como “todos os direitos implicam deveres”, apresentem-se e aprovem-se diplomas legais em que se estabeleçam os deveres que os seres humanos têm para com os animais, sobre os quais são titulares de direitos. À consideração da Senhora deputada Rosa Albernaz e de todos os outros deputados que não entendam como absolutos os direitos dos seres humanos sobres os animais…

Não queremos deixar de aludir a um argumento dos que contestam a legitimidade das preocupações com os comportamentos abusivos e cruéis relativamente aos animais: “pois, mas vocês, tão preocupados com os animais, dedicam-se à caça e não têm problemas em comer um bom bife”. Pela nossa parte, não somos atingidos por esta acusação. Desaprovamos a caça (competitiva ou não) e propugnamos a alimentação vegetariana, pela razão principal de que (insofismavelmente) as plantas, ao serem colhidas, não experimentam o sofrimento que os animais sentem, quando sacrificados. As nossas preocupações ecológicas nem descambam para fundamentalismos nem se contentam com “folclores”, egoístas e de fachada, completamente omissos (por exemplo) quanto aos horrores quotidianos dos matadouros da nossa dita civilização. Deste modo, remetemos para o artigo que, no presente número, se inclui sobre essa questão.

José Manuel Anacleto
Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural

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