Propomo-nos comentar em termos de filosofia Teosófica-Esotérica 1 – e unicamente nesses termos – este magnífico poema de Fernando Pessoa / Álvaro de Campos:
“Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva…
Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!
Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Por que é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?
Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!
Feliz o homem marçano
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.
A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir”.
A generalidade dos críticos interpreta este poema como significando simplesmente o heterónimo pessoano Álvaro Campos a dirigir-se a outro heterónimo, Alberto Caeiro, tomando-o como seu mestre e elogiando (ao mesmo tempo que confessa a incapacidade para “imitar”) a sua visão pura das coisas, tal como elas objectivamente são 2.
Ousamos, porém, sugerir uma outra interpretação, que a genialidade de Fernando Pessoa acoberta sobre aquela. Lembremos que Pessoa dedicou parte substancial da sua vida a estudos esotéricos. Numa grande parte da sua obra estão bem patentes princípios, ideias e sugestões de teor marcadamente esotéricos. Foi ele o tradutor (com o nome próprio ou com o pseudónimo Fernando Castro) de grande parte dos primeiros livros de Teosofia vertidos para Português, e editados pela Livraria Clássica Editora, na segunda década do século XX. De modo que ele estava perfeitamente identificando com os conceitos necessários ao sentido “esotérico” deste poema que elegemos.
Nele, Pessoa joga com a analogia entre o Mestre Oculto mas externo – um Grande Ser, um Mahâtma, um Rishi, Arhat, um Adepto, um Irmão Maior, um Oficial da Grande Fraternidade ou Governo do Mundo – e o Mestre interno, o Homem Espiritual, a natureza perene, Buddhi e Manas Superior.
Esta última referência suscita a necessidade urgente de expor a classificação septenária dos Princípios humanos de existência e consciência, tal como surge nas concepções esotéricas mais avisadas. Nestas, privilegiamos a Teosofia de Helena P. Blavatsky, por a considerarmos, de longe, a mais abarcante e de maior solidez e profundidade filosóficas e científicas. Não é aqui o lugar de fazer a sua defesa diante das críticas que frequentemente lhe são dirigidas – a nosso ver, na grande maioria das vezes, com bastante parcialidade e desconhecimento de causa. Bastará dizer que (estas) incidem sobre aspectos laterais ou secundários, que se rejeitam com base em pressupostos deveras questionáveis; e que revelam invariavelmente a incompreensão fundamental das proposições essenciais daquela Autora e do sistema que apresentou. Jamais vimos discutir seriamente a poderosa e subtilíssima metafísica de A Doutrina Secreta (especialmente o Volume I) de Helena Blavatsky. Sem a ponderação de tal, a apreciação de pontos menores desinseridos do seu todo coerente torna-se descabida.
De modo semelhante, a apresentação e caracterização dos sete Princípios pode gerar alguma estranheza e mesmo o juízo (irreflectido ou sobranceiro) de que é incompreensível. No entanto, essa caracterização é susceptível de ser perfeitamente compreendida em termos racionais. Pode ser discutida, decerto; mas não antes de ser entendida. E sem ser compreendida no seu essencial, qualquer avaliação é precipitada.
Avancemos, então, na exposição prometida.
O Ser Humano é uma entidade complexa que tem vários níveis ontológicos e de consciência. Esses diferentes níveis correspondem ao que na Filosofia Esotérica é habitual designar por Princípios. Sustenta-se que cada um desses Princípios, em número de sete, radica de um Plano ou diferenciação da Substância-Vida-Consciência Universal, havendo naturalmente uma constante interacção entre esses dois domínios (microcósmico e macrocósmico).
Recordemos e caracterizemos brevemente esses sete Princípios (os números à esquerda, indicam as duas formas possíveis de contar, do mais elevado para o mais denso ou vice-versa).
1.7. Âtman – O Espírito (como Ser Incondicionado e Vontade Pura) 3; o Eu 4 Divino, Imanifestado; a Testemunha; grosso modo, o Purusha da Filosofia Samkhya; o Neshmash da Cabala; o “Pai que Está no Céu”, de que falou Jesus (Mateus, 5; Lucas, 11: 13, etc.);
2.6. Buddhi – A Inteligência Espiritual; a Intuição; claro Entendimento; Intelecto – Noús. O termo é aqui empregue numa acepção só parcialmente coincidente com a da Filosofia Samkhya, na qual Buddhi é a consciência determinativa e a correspondente humana de Mahat, a Mente Cósmica.
3.5. Manas (Manas Superior) – A Mente (Superior ou Abstracta);
4. Kâma ou Kâma-Manas – A força do desejo egotista e a energia mental por ele mobilizada e envolvida;
5.3. Linga-Sharîra – Corpo padrão ou modelo, e das causas formativas do Corpo Físico; foi inicialmente chamado Corpo Astral e, mais tarde, Duplo Etérico;
6.2. Prâna – A Vitalidade, o Fluido Vital. Na Vedanta, a união deste e do Princípio anteriormente mencionado forma o Pranamayakosha, literalmente “o veículo [forma, corpo] ilusório Vital”.
7.1. Sthûla-Sharîra – O Corpo Físico Denso.
Os três Princípios superiores, Âtma-Buddhi-Manas, constituem a Tríade Superior, o Homem Espiritual; os quatro restantes Princípios formam o Eu Inferior, o Quaternário Inferior ou Personalidade 5, isto é, a natureza mortal, que dura somente o período de uma encarnação.
Tanto no Macrocosmos, como no Homem (que, de acordo com a Lei Hermética das Analogias ou Correspondências, é feito à imagem e semelhança daquele), temos uma Unidade Primordial (e, também, final, derradeira), que se diferencia em dois pólos, e, “em seguida”, numa trindade – visto resultar necessariamente um terceiro aspecto da união de dois pólos, um positivo (+) e o outro receptivo (–) –, que depois se faz um septenário. Âtman, como Espírito Puro e Uno, necessita de um véu ou veículo através do qual se possa manifestar ou expressar (reflectir) e, desse modo, relacionar-se com a multiplicidade. Gera-se, assim, a Díade Superior ou Monádica: Âtma-Buddhi. Entretanto, mesmo Buddhi é demasiado excelso e puro para se manifestar directamente nos mundos inferiores. Tem, necessariamente, de o fazer através de Manas (vemos, uma vez mais, a indispensabilidade de um mental desenvolvido para que uma compreensão e vivência superior – búddhica, intuitiva – se possa expressar no ser humano). E, por sua vez, um raio ou fragmento de Manas, unindo-se a Kâma 6 – a força do desejo que atrai para a encarnação, para a actividade nos mundos mais densos –, está na origem de cada uma das personalidades encarnativas, i.e., do Quaternário Inferior.
Por outro lado, cada um dos mencionados sete Princípios é, naturalmente, ou positivo ou receptivo em relação ao que lhe é imediatamente superior ou inferior, o que nos permitirá perceber a questão das diferentes Almas, a que adiante nos referiremos. Num plano de dever-ser, cabe ao princípio relativamente superior ser positivo face ao relativamente inferior, e cabe a este ser receptivo relativamente àquele. Mas, no ser humano imperfeito, essa relação natural e hierárquica das coisas não se encontra estabelecida. Por exemplo, na maioria dos seres humanos, o princípio Kâmico, de desejo-força egoísta, é positivo face a um mental pouco desenvolvido e pouco actuante e que, portanto, é conduzido e dinamizado – escravizado – por aquele; da mesma forma, o mental é, geralmente, hiperactivo e ruidoso, se comparado ao entendimento espiritual, a que não dá voz, espaço e lugar.
A Alma é a propiciadora (no sentido descendente) e o resultado (no sentido ascendente) da relação entre o Espírito e a Substância material (entre o pólo positivo e receptivo, Pai e Mãe, Consciência Una e Matéria, Purusha e Prakriti). Também essa relação se estabelece em sete Planos e Princípios, dando origem a sete níveis anímicos. Como existem Sete Princípios no Homem e Sete Planos neste Cosmos, em todos eles havendo uma relação entre o influxo de vida irradiado do pólo Espiritual e a Substância característica de cada Plano (e de que são constituídos os veículos do Homem Espiritual), decorre naturalmente que há sete Almas – ou, por outras palavras, sete níveis ou diferenciações de A Alma.
Assim, em termos macrocósmicos, existem, sete diferenciações da Alma Universal, ou melhor, sete diferenciações do Akasha 7 inteligentemente activado pela Alma Universal (Anima Mundi ou Alaya), desde o Maha-Akasha, até ao nível inferior, chamado “Luz Astral”. E também no Ser Humano existe idêntica pluralidade de Almas. No entanto, há três Almas, ou seja, três níveis da Alma, especialmente relevantes:
* A Alma Espiritual, que é Âtma-Buddhi, ou seja, Buddhi, como veículo de Âtman. Esta díade é a base operativa dos Mestres de Compaixão e do Conhecimento Sagrado.
* A Alma Humana, que é Buddhi-Manas, ou seja, o princípio Manásico, de Inteligência Criadora – que caracteriza o Homem como o Pensador –, iluminado e orientado pelo Princípio que lhe está acima: Buddhi, a Intuição, o Discernimento, a Sabedoria e o Amor transpessoais. A Alma Humana representa a nossa ligação para os mundos de verdadeira espiritualidade e bem-aventurança. A Humanidade ainda caminha para este tipo de consciência da Inteligência Criadora e rigorosa, porque iluminada pela Intuição; de momento, predomina a mentalidade estreita, míope, repetitiva, separatista e ilusória. A Alma Humana é a conquista específica do Reino Humano, sendo pois identificada com o Filho do Homem. Recordemos que Cristo-Jesus a Si mesmo se chamava por “O Filho do Homem”. Todos conhecem a frase que, segundo a legenda, lhe foi dirigida, quando entregue a Pilatos: “Ecce Homo” – Eis o Homem! Ele, sim, era de facto um Homem!
* A Alma Animal ou Temporal, que é Kâma-Manas, ou seja, é constituída pela natureza de Kâma (desejo, paixão animal, emoção separatista, afectos pessoais e egotistas) e por uma porção ou raio de Manas (Inteligência), assim volvido Mente Inferior (Manas Inferior). Esta, no homem comum, ao enredar-se nas reacções aos fenómenos e estímulos externos, e ao deixar-se dominar pelo Desejo (Kâma), volve-se pouco mais do que simples astúcia. A Alma Animal é, pois, o agregado Kâma-Manas. A sua quintessência sublimada pode ser conquistada para a perenidade; o que não se transmuta e eleva desta natureza, pelo contrário, é mortal.
No presente momento da sua escalada evolutiva, a Alma Temporal representa o mais poderoso factor de negatividade, de rebaixamento vibratório, de ilusão, violência e competitividade a todo o custo no Reino Humano. Repare-se que é normalmente Kâma que assume a postura positiva e domina e conduz Manas (colocando-o ao serviço do desejo egotista), em vez de ser Manas que serena e dirige Kâma, de acordo com a benigna, sábia e luminosa influência de Buddhi (Mercúrio) ou Intuição.
Entretanto, cinjamo-nos agora a uma mera duplicidade. Os grandes filósofos da Antiguidade Clássica, na esteira de Platão, distinguiam o Noús e a Psyche. A Alma Noética é a Alma Racional e Imortal, a Alma Superior; a Psyche, é a Alma inferior, irracional, mortal ou condicionalmente mortal (como se vê em Pitágoras, Platão, nos neoplatónicos e no próprio mito de Psyche e Eros, mesmo nos ecos pouco convictos de Ovídio). Lucrécio virá a consagrar a nomenclatura de Anima (Alma) para Psyche, e de Animus (espírito ou alma espiritual) para Noús.
Isto encontra a sua correspondência na distinção, estabelecida pelos cabalistas mais esclarecidos, entre Ruach e Nephesh.
Nesta dualidade, devemos considerar, pois, o Kâma-Manas, a chamada Díade Central ou Alma Inferior, a Psyche ou Nephesh; e Buddhi-Manas, o Noús, a Alma Superior ou Ruach.
Enquanto que a Alma Noética, Buddhi-Manas, é a dispensadora da Sabedoria (Sophia, a Ciência Integral do Espírito Santo, a nossa guia segura, a luz clara e redentora do Conhecimento Sagrado), opostamente, a Alma Inferior, Kâma-Manásica é a detonadora das nossas convulsões, a agitadora do mar da ilusão, a senhora dos caminhos erráticos, da confusão, das ondas alterosas do desejo que cega e engana – a guia falaciosa, porque ela própria se encontra perdida (corresponde a Sophia Achamôth, ou Sophia inferior dos antigos Gnósticos).
A Alma Noética ou Alma Superior é o Filho do Homem; a Psyche ou Alma inferior é o(a) Filho(a) da Mulher, aqui tomada como simbolizando a matéria.
A Alma Espiritual é pura e receptora da Sabedoria Divina; a Alma Humana é mediadora sacrificada e segura; a Alma Temporal é a grande tentadora, que oferece ilusões que inevitavelmente se transformarão em… desilusões.
O Mestre iniciador “refúgio das saudades de todos os deuses antigos”, Hierofante sucessor dos Hierofantes de todas as Idades, traz a liberdade, outorga “a pavorosa ciência de ver” – o Conhecimento dos Mistérios, com as suas verdades sublimes mas atemorizadoras para quem fica ciente da imensa responsabilidade que impende sobre o Homem que, assim, ficou consciente da vacuidade dos ídolos do mundo e da puerilidade das concepções religiosas populares 8. Ensina “a clareza da vista”,
e “a ter a alma” correspondente, chamando “para o alto dos montes” – a montanha do Caminho Ascendente, no cimo da qual o homem se torna um Adepto, que um dia será crucificado, volvendo-se um Salvador da Humanidade (um Cristo, um Bodhisattva).
O Mestre tem a sua representação e correspondência na Alma Humana e/ou na Alma Espiritual, isto é, o Manas Superior ou o Buddhi – mais propriamente, a conjunção Buddhi-Manas. Esta é a “flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva” – subjectiva porque envolvida e distorcida pelo nosso eu inferior, pessoal, separatista (ver, também, infra); dilúvio, porque a água é o símbolo do emocional e o psiquismo inferior é o Kâma-Manas, isto é, desejos e emoções pessoais a envolver e condicionar o Mental.
Esta “flor acima da inteligência subjectiva” alude também ao lótus causal. Lembremos que o corpo causal é constituído de substância dos níveis superiores do Plano Mental ou, melhor, da conjunção de Buddhi-Manas. Buddhi-Manas é o âmago, o ápice da nossa natureza racional, “o coração do nosso corpo intelectual”. É o nosso nível noético.
Entre a generalidade dos neoplatónicos, a compreensão noética era claramente distinguida do funcionamento psíquico, da Mente inferior ou concreta. Por exemplo, no Comentário sobre o Timeu, Proclo estabelecia agudamente essa diferenciação: “Da Alma racional há duas partes, uma das quais é Ciência e a outra simples opinião. Mais uma vez, entretanto, da dianoia, uma parte é considerada a inferior, a dianoia propriamente dita, mas outra parte é a mais elevada, sendo considerada o Intelecto [o Noús] nela, e de acordo com a qual a alma especialmente se torna intelectiva. Alguns chamam-lhe intelecto em capacidade. Há ainda uma outra coisa acima disto, que é o cume de toda a Alma; está sobremaneira aliada ao Uno, e, semelhantemente, deseja bem a todas as coisas, sempre se elevando e entregando aos Deuses e estando prontamente disposta a fazer tudo o que lhes agrade. Isto, também, é considerado o Um da Alma. Transporta a imagem do superessencial um e unifica a Alma inteira”9.
Hoje em dia, contudo, a cultura maioritária parece ter perdido completamente a noção destas distinções ou, pior ainda, na sua euforia do “concreto”, do opinar a todo o custo, dos micro-conhecimentos e de uma erudição superficial e tecnicista, inverte a hierarquia real das coisas. Numa síntese muito acertada da concepção neoplatónica, observa Lucas Siorvanes que “o Intelecto [Noús, Inteligência Espiritual ou Intuitiva] concebe as coisas simultaneamente e como integralidades. A Psyché tem que combinar diferentes ideias numa mente subjectiva, e exercer o raciocínio”10. Aqui remetemos para o livro A Essência da Arte 11, onde foi desenvolvida a distinção entre “Realismo, Subjectivismo e Objectivismo”. O Objectivismo radica na mera observação sensorial e (quase) não interpretativa do mundo “externo”; o Subjectivismo desponta das interpretações diversas de diferentes sujeitos, ao nível do psiquismo (inferior: o Kâma-Manas). O Conhecimento verdadeiro, paradigmático, não toldado por subjectivismo(s), é o que denominamos de Realismo. E tal é a virtude do Noús, de Buddhi, da Inteligência Intuitiva, da Alma Espiritual.
Por estes motivos, o Noús é o Mestre da Psyché ou Mente inferior, é aquilo que, ao nível de cada subjectividade, lhe justapõe o Real.
Em 1909, o autor Dinamarquês Carl Louis Grasshoff, que usou o pseudónimo Max Heindel, publicou uma obra intitulada O Conceito Rosacruz do Cosmos ou, noutras edições, Cosmogonia dos Rosacruzes. Foi o seu livro mais importante. Ele fora membro da Sociedade Teosófica e, nesse livro, usou conceitos e ideias que podem ser encontrados nas obras de ambas as duas primeiras gerações de Teósofos, embora uma boa parte desses termos, na verdade, possam ser encontrados em A Doutrina Secreta de H. P. Blavatsky. Outros conceitos e termos foram bebidos em Rudolf Steiner (ele próprio, ao tempo, também ainda membro da Sociedade Teosófica), em tradições Ocultistas ocidentais (Gnósticas, Rosacrucianas, Martinistas) ou são de cunho próprio.
Ao que os Teófosos associaram o termo Buddhi, chamou Max Heindel “Espírito de Vida”; ao Manas Superior ou Mente Abstracta / Corpo Causal, chamou “Espírito Humano.” E encontramos estes termos no poema de Fernando Pessoa (ou seu heterónimo Álvaro de Campos): “Vida da origem da minha inspiração”; “Alma abstracta e visual”; “Espírito humano”. Tenhamos presente que a verdadeira inspiração vem de Buddhi (Espírito de Vida); que, segundo a tradição esotérica, o sentido da visão correlaciona-se com o Mental; que a Alma Abstracta é a Alma Humana, a Mente Superior ou, como lhe chama Max Heindel, “Espírito Humano”.
Buddhi-Manas, Espírito de Vida-Espírito Humano, ou Alma Espiritual-Alma Humana/Abstracta é (são) a nossa natureza solar; é (são), no nosso interior, o Sol que nos propicia a verdadeira luz, e onde realmente pode agir o Mestre “externo”, um Grande Instrutor do Conhecimento Sagrado: “Meu mestre e meu guia! / A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou, / Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente, / Natural como um dia mostrando tudo…”.
O Mestre, “externo” e/ou “interno”, não é somente um Instrutor, um transmissor de Conhecimento; é, também, um dador, um insuflador de substância-consciência-vida 12, sem a qual o (candidato a) discípulo não avança realmente. Essa dádiva de “alma”, de qualidade de ser, tem que ser feita; mas ela pode não ser possível, na prática, se o discípulo estiver a falhar na criação de condições para receber essa nova consciência e lidar com ela. Dar-se-á, então, uma crise, um contraste difícil de ultrapassar. F. Pessoa expressa-o poeticamente: Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista, / Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara? / Por que é que me chamaste para o alto dos montes, / Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar? / Por que é que me deste a tua alma, se eu não sabia que fazer dela / Como quem está carregado de ouro num deserto, / Ou canta com voz divina entre ruínas? / Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma, / Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?”.
Tendo acesso a uma vibração superior, a uma vida muito mais nítida e intensa, o discípulo experimenta uma maravilhosa expansão, uma indizível alegria, profunda e imensa. Entretanto, para a consciência humana mais superficial – a da personalidade – agudiza-se dolorosamente a desconformidade com o mundo, que se torna – a este nível superficial, repetimos –, uma permanente insatisfação: “Prouvera ao Deus ignoto 13 que eu ficasse sempre aquele / Poeta decadente, estupidamente pretensioso, / Que poderia ao menos vir a agradar, / E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver. / Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano! / Feliz o homem marçano / Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada, / Que tem a sua vida usual, / Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio, / Que dorme sono, / Que come comida, / Que bebe bebida, e por isso tem alegria. / A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação”.
É também por isto que o Ocultismo pode ser “a pavorosa ciência de ver”. Efectivamente, “o destino humano é ser escravo”, “escravo de tudo, como um pó de todos os ventos” 14; “o sentido de ser humano é dormir”. Assim é, quanto ao homem inferior; no entanto, o Homem Espiritual que há em nós – que é o nosso verdadeiro Ser – clama e anseia liberdade e acabará por arrebatar para si, no cimo da Montanha, a Alma Humana, que aí será gloriosamente bem aventurada. É esse o destino de tudo e de todos!
1 Afastamo-nos, pois, decididamente, de esoterismos had-hoc e de gnoses selvagens que proliferam nos nossos dias e que – salvaguardando algumas boas intenções – somos os primeiros a lamentar. A Teosofia nunca pretendeu ser uma revelação mas, sim, a síntese das Tradições de Sabedoria das mais diferentes idades e latitudes.
2 … visão que ignora ou rejeita a dicotomia númeno-fenómeno.
3 Não concordamos com a tradução de Âtman como “Alma”, e menos ainda como “Pessoa”. “Espírito” (na correspondência com Spiritus e Pneuma) é muito mais consentâneo.
4 … mas, paradoxalmente que seja, um “Eu” não egoísta, identificado com o Ser Universal, Brahman, e que é consciência pura, não cindida. Também no sistema teosófico / esotérico se afirma a identidade Âtman–Brahman vertida nas Upanishades e nos tratados advaitistas.
5 Do Latim Persona, i.e., “Máscara”.
6 Corresponde fundamentalmente ao pali Tanhâ, do ensinamento Budista.
7 O Akasha é a irradiação de Mûlaprakriti (a raiz – Mûla – da substância ou natureza – Prakriti). Depois de um Pralaya (período de repouso, de Noite, entre dois ciclos – dias – de actividade universal) é o primeiro a despertar para a vida. É a essência plástica, o Pai-Mãe.
É o Espaço Universal em que está imanente a Ideação eterna do Universo nos seus aspectos sempre cambiantes sobre os Planos da matéria e da objectividade e do qual procede o Logos, ou seja, o “Verbo” ou “linguagem” no seu sentido místico. É a matriz do Universo, o Mysterium Magnum do qual tudo o que existe nasceu por separação ou diferenciação.
É a Matriz do Universo, a partir da qual tudo se diferenciou. O pano de fundo (o substrato) e o potencial onde se desenrola e tece toda a animação do Cosmos manifestado. É a causa da existência. Éa substância viva primordial.
Todas as coisas, por assim dizer, são Akasha condensado, que se tornou visível através da mudança do seu estado supra-etéreo (o Aether Primordial) numa forma concentrada e tangível, e todas as coisas da Natureza podem ser, outra vez, resolvidas em Akasha e tornam-se invisíveis, mudando para repulsão o poder de atracção, que mantinha os seus átomos unidos.
É, cosmicamente, uma substância radiante, fria e plástica, e criadora. Na sua condição criadora, é chamada a Sub-Raiz; e em conjunção com o calor radiante “faz retornar à vida mundos mortos”. No seu aspecto superior, é a Alma do Mundo; no seu aspecto inferior, é o Destruidor.
O Akasha – por vezes imprecisamente identificado à Anima Mundi – é a potência do Espaço (ou o Espaço em potência), que o Tempo (signo do Espírito) irá percorrer e activar. Na verdade, a Anima Mundi é já o produto activado pela soma de ‘unidades monádicas’ que nos precederam e que percorreram já um longo troço do Caminho Evolutivo.
Fohat (a energia dinâmica da Ideação Cósmica, o elo que une o Espírito à Matéria), correndo ao longo dos sete princípios do Akasha, actua sobre a substância manifestada, ou o Elemento único, e diferenciando-o em vários centros de energia, põe em evolução a lei de Evolução Cósmica que, em obediência à Ideação da Mente Universal, produz todos os diversos estados de Ser.
Em resumo: o Akasha é o pano de fundo, o substrato universal, como imensa tela, inicialmente escuridão absoluta, onde se move toda a animação universal. Tudo o que acontece no Universo, de alguma forma, é anti-Akasha. Repare-se num ecrã: são ali projectadas as imagens. Aquelas imagens são o anti-ecrã. O Akasha é o espaço cósmico, no qual está imanente, no qual está impressa, a ideação eterna de todo o Cosmos, é o próprio espaço universal, é a incessante vibração sonora, é a incessante vibração que, por condensação, por densificação, dá origem às formas do nosso mundo. É como que um pano de fundo vibratório, cuja emissão sonora permite que todas as coisas sejam; ali, está o protótipo, a possibilidade, a latência, de tudo quanto pode existir; quando aquilo se condensa, se densifica, dá origem às formas do nosso mundo. É o grande arquivo do devir, onde estão todas as potencialidades de todas as coisas que podem vir a densificar-se, a concretizar-se, a materializar-se, a vir à Manifestação. É o ponto de toda a potencialidade manifestadora. Ainda não é bem a Manifestação, é a linha divisória entre o Imanifestado e a Manifestação, porque é a potencialidade de toda a Manifestação.
A Luz Astral é o aspecto inferior do Akasha (enquanto a Anima Mundi é o seu aspecto superior).
8 … exotéricas e idólatras, mesmo as que alegadamente repudiam as (outras) idolatrias.
9 Proclo, Commentaries on The Timaeus of Plato, 2 vols., tradução de Thomas Taylor, Kessinger Publishing, Montana.
10 Siorvanes, Lucas, Proclus – Neo-Platonic Philosophy and Science, Edinburg University Press, Edimburgo, 1996; pág. 156.
11 Franco Morais, Centro Lusitano de Unificação Cultural, pp. 79-100.
12 Os três termos são convertíveis entre sim. Constituem a tri-unidade universal. Em última instância, porém, tudo é Consciência – Consciência una, absoluta, ilimitada.
13 Com a sua penetração filosófica e ocultista, Fernando Pessoa sabia que o Divino é, em si mesmo, ignoto.
14 Assim é, de facto, o nosso psiquismo inferior, que funciona em termos de reacção a impulsos externos, por eles sendo condicionado e conduzido.
(Partes deste artigo incluem texto publicado no meu livro Alexandria e o Conhecimento Sagrado, pp. 625-9)