Biosofia nº 18

3.50

Categoria:

Artigo

 

ESOTERISMO DE A a Z

 

Demiurgo – Construtor(es) do(s) Universo(s)

 

A palavra Demiurgo significa “Construtor, Artífice” e é habitualmente referida, em termos cosmogónicos, relativamente ao surgimento e formação dos Universos. Foi usada por antigos e notáveis filósofos gregos, nomeadamente por Platão e, a partir daí, por diferentes escolas e autores, com maior ou menor propriedade. Visto que Platão expôs, na medida do possível, e sob os necessários véus, partes relevantes da Ciência Espiritual, é normal que, na exposição da Cosmogonia Oculta, se recorra por vezes a essa palavra.

 

Poder-se-á imediatamente pensar que “Demiurgo” designa, então, o Deus-Pai Criador de tudo quanto existe; porém, essa é uma formulação simplista e incorrecta, que não pode, sem mais, ser subscrita pela Sabedoria Esotérica. Há imensas questões e vertentes a ponderar. Certamente, não poderíamos (ainda que o soubéssemos) expô-las todas. No entanto, não vamos iludir algumas das principais.

 

A dor e a imperfeição do mundo

Toda a Humanidade é digna de compaixão; contudo, individualmente considerados, somos ainda, muitas vezes, mesquinhos. Grande parte dos seres humanos assemelham-se assim a bonecos de corda. A imagem pode parecer algo dura mas tenta ilustrar uma atitude muito vulgarizada: as pessoas surgem neste mundo, mexem-se muito, fazem e dizem muitas coisas (um considerável número das quais, talvez, completamente inúteis); entretanto, nunca se questionaram por que e para que estão aqui; que é isso que nelas palpita como vida, lhes permite movimentar-se, pensar, ter sentimentos; que sentido real e profundo deve ter as suas existências. Quando o fazem, em grande parte dos casos rapidamente se entregam nos braços de alguma crença mais ou menos simplista ou, quando mais pertinazes, tornam-se fanáticos desta ou daquela Igreja (ou de qualquer outro sucedâneo). É infelizmente raro o genuíno investigador, que busca incessantemente a verdade, que não tem medo de enfrentar as questões e ver o mundo tal qual ele é, que exige respostas profundas, firmes e consistentes.

 

Não obstante, e até por entendermos que os leitores da “Biosofia”, pelo tipo de temáticas em que mostram interesse, serão dados à reflexão, pensamos que não constitui nenhum exagero afirmar que, decerto, cada um de nós, ao menos uma vez na vida, experimentou a sensação de dor, de sofrimento, de vulnerabilidade ou de verdadeira tristeza. Isto sucede particularmente em momentos mais críticos, quando somos assaltados por uma doença, por um problema pessoal, pela morte (desencarne) de algum ente querido; também, quando observamos os horrores do mundo que nos cerca, especialmente no século que findou (e que também já se indiciam no recém-iniciado), em que a humanidade vem realizando grandes conquistas científicas e tecnológicas mas em que, com isso, construiu meios de destruição autenticamente assombrosos, e em que, aqui e ali, se cometeram iniquidades que nos fazem quase desfalecer de horror ao delas tomarmos conhecimento; quando constatamos o oceano de dor e de loucura em que a humanidade em geral está imersa; quando, enfim, “apenas” sentimos aquela angústia, aquela insatisfação, aquele vazio fundamental que tantas vezes nos acompanha no dia a dia…

 

Nessas ocasiões, em alguma fase da nossa vida, seguramente nos teremos interrogado se não existe um Deus no “Céu” ou, se ele existe, por que permite que tais coisas possam acontecer no mundo.

 

O problema do mal

Mais ainda, aliás: quando vemos que não apenas a nós, humanos, nos toca a dor e a miséria, mas que o sofrimento pode ser tão cruento e brutal entre os animais, na sua luta pela sobrevivência e não só; quando vemos que até no reino vegetal há destruição; quando observamos que, na Natureza, há tentativas falhadas, insucessos ou mesmo (aparentes?) aberrações; quando constatamos que todo e qualquer ser que conheçamos é limitado e, portanto, imperfeito; quando, enfim, nos confrontamos com o problema do mal (1) – da existência evidente do mal no Universo -, verificamos como têm plena razão de ser as poéticas palavras do Buddha Gautama: “Não te iludas, Ananda, toda a existência está plena de dor. Assim, chora a criança desde que nasce…”. E acrescentava Ele, face a tudo o que tentámos aludir: “Se Deus permite tais coisas, não pode ser bom; ou então, não tem o poder de evitá-las, e não pode ser Deus” (2).

 

De facto, se existe – se existisse – um Deus simultaneamente Absoluto, Criador, Todo-Poderoso e infinitamente Bom, como é que não quis ou não pôde fazer um mundo muito mais perfeito (aliás, infinitamente perfeito) e feliz (aliás, infinitamente feliz, bem-aventurado) do que este? (3)

 

Respostas incoerentes

A teologia das Igrejas Cristãs ufana-se – literalmente  (4)! –  de ter uma resposta para esse problema. Sintetizando, a sua posição é esta: Deus é uma Pessoa – que é também três pessoas  (5) – distinta do mundo, que criou do nada (concepção teísta), da mesma forma como cria as almas humanas (porque os animais, por exemplo, não teriam alma) cada vez que é concebido um corpo a que se vão associar. Deus criou o homem para ser feliz neste mundo, embora sempre numa limitada condição. Demoniacamente tentados a serem idênticos a Deus, para tanto comendo da Árvore do Conhecimento do bem e do mal, remotos antepassados nossos teriam cometido o pecado original, motivo pelo qual temos de sofrer – e muito! – neste mundo (assim interpretam o primeiro livro da Bíblia). Alguns milhões de anos depois, Deus enviou o seu Filho (que é Ele mesmo?!) para redimir (os que n’Ele crerem) do pecado que assim entrou no mundo e para os “conduzir à vida eterna”.

 

Dificilmente alguma vez se concebeu uma ideia tão incoerente, disparatada e ofensiva do mínimo sentido de justiça e de lógica! Se não, vejamos:

 

1) Existindo um Deus pessoal, infinitamente justo, criador e governante moral do Universo, onde intervém sempre que e como lhe parece conveniente (6) – que é o que sustentam tais teologias -, de que modo podemos entender e aceitar que milhares e milhares de gerações de seres humanos, muitos e muitos milhares de milhões de homens e mulheres continuem a sofrer as consequências de um facto para o qual não contribuíram, visto não existirem no momento em que esse facto foi – por outros – praticado (lembremos que as Igrejas Cristãs não aceitam a ideia da preexistência das Almas, da Reencarnação e, basicamente, do Karma)? Alguém acharia justo que um juiz nos aplicasse uma pena de prisão e uma multa (com juros e correcção monetária, já agora…) por um delito cometido por um antepassado nosso que viveu há – mero exemplo – 100.000 anos atrás? Se tal acontecesse, qualquer cidadão no seu perfeito juízo sentiria a mais profunda revolta, indignação e sentimento de estar a ser alvo de uma injustiça colossal. Decerto, consideraria o juiz (ou, então, o legislador) iníquo, estúpido, monstruoso. Com grande probabilidade, haveriam manifestações de protesto, desacatos, violência. Como, então, admitir que o Legislador e Juiz divino, infinitamente justo e sábio, pudesse ter tal iniquidade, insensatez e monstruosidade? E como se poderia, ainda assim, dirigir-Se-lhe louvores (como os que, supostamente se fazem ou deveriam fazer a um tal Deus)?

 

Muitas vezes nos interrogámos como é que tais “explicações” podem ser concebidas e aceites, e só encontramos duas razões: o fanatismo retorcido e mal informado de alguns (os inventores de tal história) e a indiferença real do cidadão comum perante qualquer espiritualidade profunda, que de facto não leva a sério e que por isso não questiona – como o faria se estivessem em causa, por exemplo, valores monetários que o afectassem. Aí, e porque a questão lhe importaria, logo vislumbrava a imensidão da injustiça…

 

2) Se Deus é omnipotente e infinitamente bom e faz todas as criaturas como quer, por que concebeu um ser limitado como o ser humano, mesmo no seu estado original de graça? E por que cria seres, como os animais, condenados também ao sofrimento – e, segundo tal teologia, à extinção –, não obstante terem sensibilidade à dor, emoções, sentimentos e até inteligência?

 

3) A isto, acresce uma infinidade de questões, de que só suscitaremos algumas, e, ainda assim, limitando-nos a deixar as perguntas sem mais comentários: deveria o ser humano permanecer infantilmente sem discernimento próprio, sem ciência (do bem e do mal)? O original  do livro do Génesis (7) fala em um Deus ou em os Elohim (uma pluralidade, uma hierarquia)? E por que, no mesmo livro, ora se fala nos Elohim ora em Jeová (e, ainda, no meio, em Elohim-Jeová)? E a primeira palavra bíblica, ainda no Genesis, palavra essa que é Berasit ou Berasheth significa no princípio (no sentido de, no início, no começo) ou significa Sabedoria (na qual foram criados os Céus e a Terra, etc.)? E como poderia ser Deus infinito e absoluto, se fez surgir mundos e criaturas do nada, (o que quereria dizer) de algo que não Ele próprio? E, por qual explicável e aceitável razão – visto que a Humanidade tem já uma Idade tão longa – Deus não teria desencadeado imediatamente o Seu plano de salvação, e só há apenas dois milénios (depois de incontáveis outros terem decorrido), o Seu Filho veio à Terra (lembremos que os menos de 4000 anos de Judaísmo e os 2000 anos de Cristianismo são uma ínfima fracção da História da Humanidade)? Enfim, por que existem textos cosmogónicos e antropogenéticos muito mais antigos do que o Genesis e de que este é um simples resumo mais ou menos confuso?

O segundo Deus

O facto é que existe dor, limitação e falhanços no Universo. Por alguma boa razão, os gnósticos cristãos de há cerca de dois milénios atrás – infelizmente considerados como hereges pelo Cristianismo deturpado que depois triunfou – consideravam Jeová como demiurgo de um mundo inferior,  imperfeito, recusando a sua identificação com o Pai Celestial referido por Jesus e, menos ainda, com o Absoluto. Pretendiam, esses gnósticos – como Simão, Marcion, Valentino, Basílides e, de algum modo, o próprio S. Paulo -, cortar a ligação com o Jeová ciumento e vingativo que aparece em tantas páginas do Antigo Testamento. (Alguns gnósticos referiam-se a Ilda-Baoth como o criador do nosso globo físico, i.e., a Terra, como se poder ver no Codex Nazareus – o Evangelho dos Nazarenos e Ebionitas, de que falámos no nº 16 da Biosofia – e identificavam-no com Jeová. Ilda-Baoth é o “filho das Trevas”, num péssimo sentido. Para mais desenvolvimentos, cfr. “Ísis sem Véu” e “Glossário Teosófico”, de Helena Blavatsky). Por herético que este conceito hoje possa parecer, é difícil negar que ele encontra acolhimento no Evangelho segundo S. João. Lembremos partes do seu 1º Capítulo: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus… Ele estava no princípio junto de Deus… Ninguém jamais viu a Deus”. Ora, este Deus Supremo, que “ninguém jamais viu”, não pode ser o Jeová visto e descrito no Velho Testamento.

 

“Pronunciou Jesus, alguma vez, o nome de Jeová? Alguma vez pôs ele em confronto o seu Pai com esse Juiz severo e cruel; o seu Deus de misericórdia, amor e justiça, com o génio judeu da retaliação? Jamais! Desde o memorável dia em que pregou o seu Sermão da Montanha, um imensurável vazio se abriu entre o seu Deus e aquela outra divindade que fulminava os seus mandamentos de uma outra montanha – o Sinai” (8) (9)

 

Em qualquer caso, sempre os filósofos mais ilustrados se recusaram a identificar o Demiurgo com a Divindade Suprema, tendo ficado célebre a denominação que lhe foi dada por Filon : o segundo Deus.

 

O problema do mal acima mencionado tem perturbado alguns dos mais notáveis pensadores – veja-se, por exemplo, a preocupação de Leibniz (10) em tentar demonstrar que Deus tudo fez da maneira mais desejável, não podendo ter feito melhor.

 

Ainda o referido problema acabou por conduzir mesmo alguns honestos buscadores da Verdade a uma posição de ateísmo (ou, pelo menos, de agnosticismo).

 

A Ciência Oculta reconhece a incompatibilidade entre o facto de existir um Universo sublime e extraordinariamente ordenado, mas imperfeito, e a ideia de que tenha sido criado por um Deus Absoluto. Sustenta, aliás, que o Absoluto não poderia conceber nem criar (pelo menos, directamente) o relativo e condicionado e, menos ainda, algo de externo a si; a Criação a partir do nada, suporia acrescentar algo ao Absoluto, o que é insustentável. Não obstante, o Ocultismo não é agnóstico (é por isso que é Ciência) e tão pouco é ateísta – excepto no sentido de rejeitar as concepções antropomórficas do Divino.

 

Várias acepções de divino

O Esoterismo associa a ideia de Divindade a três níveis fundamentais, que indicamos em seguida, de forma sucinta:

 

I). Um Princípio Universal, Impessoal, Ilimitado, Inominado e Inefável, absoluto Ser e não-Ser (bem como Consciência absoluta, e absoluta Inconsciência de qualquer coisa limitada), porque o seu único atributo é Ele mesmo. É Causa incausada, infinita e eterna; a Realidade Una e Absoluta, anterior e transcendente a tudo o que é manifestado ou condicionado.

 

Estamos perante o Parabrahman (ou, ainda, o Brahman Supremo, o Brahman Indiviso ou o Brahmam Nirguna, i.e., sem atributos) dos vedantinos, o Ain Soph dos cabalistas, o Deus Supremo Ignoto dos antigos gregos, o Deus Imanifestado ou Transcendente de uma teosofia cristã. Em última instância, porém, o uso da palavra ”Deus” (mais a mais, atendendo ao sentido que vulgarmente lhe é dado) é equívoca. Aquilo a que se alude aqui não é  a  O ‘Deus’ ou a  um Deus mas sim ao Espaço Infinito e Ilimitado, de onde tudo desponta,  o Grande “Contenedor”, o Arik-Anpin (o nome dado, neste sentido, ao Universo pelos cabalistas) – aquilo que Sempre é, foi e será, ainda que todos os mundos existentes desapareçam (11) (12).

 

  1. II) A 2ª proposição da Doutrina Secreta (11) refere-se aos “Universos inumeráveis manifestando-se e desaparecendo… como o fluxo e o refluxo periódico das marés”.

 

Temos, deste modo, os Logoï Criadores que, emanando ou radiando da Realidade Una e Imanifesta, se tornam a Divindade Manifestada e Imanente de um Universo – desde o Ser Supremo do Cosmos total aos Logoï Solares ou, ainda, aos Logoï Planetários. Cada um destes Seres pode ser considerado o Deus, o Brahman Inferior ou o Brahman Saguna(i.e., com qualidades) ou Ishvara do Seu próprio Universo, do qual é o mais elevado Espírito. Cada um destes Seres é o Demiurgo na esfera do Seu próprio Cosmos.

 

Entretanto, a referência a o Logos ou Demiurgo é, também ela, uma simplificação. O Logos é o mais elevado Hierarca de um Sistema ou Cosmos (13), i.e., o vértice superior de uma Hierarquia, de uma Legião, de um vasto conjunto de Criadores.; o Demiurgo expressa uma colectividade abstracta de Construtores.

 

A “Doutrina Secreta”, diz Helena P. Blavatsky, “admite um Logos, ou um ‘Criador’ colectivo do Universo; um Demiurgo, no mesmo sentido em que se fala de um ‘Arquitecto’ como ‘Criador’ de um edifício; muito embora o Arquitecto nunca houvesse tocado em uma pedra sequer, mas simplesmente elaborado o plano, deixando todo o trabalho manual ao cuidado dos operários. No nosso caso foi, o plano, traçado pela Ideação do Universo, e a obra de construção entregue às Legiões de Forças e Potestades inteligentes. Mas aquele Demiurgo não é uma Divindade pessoal, isto é, um Deus extra-cósmicoimperfeito, e sim a colectividade dos Dhyân-Chohans e das demais forças”.

 

Esta era igualmente a concepção de Platão. Ao referir-se ao Demiurgo, não pensava ele em um ou o Deus (ainda que, por vezes, certas traduções e interpretações, incapazes de se apartar dos preconceitos culturais e religiosos de hoje, pareçam fazer supor que sim). Com efeito, “Há que sublinhar o carácter politeísta do conceito de divindade que Platão nos apresenta no Timeu: a divindade é participada por vários deuses, cada um dos quais tem uma função e domínio próprios, sendo o demiurgo tão só o seu chefe hierárquico”; “Não há aqui qualquer sinal de monoteísmo: na crença da divindade está a crença nos deuses: a divindade é participada igualmente por um número indefinido de entes divinos, dos quais os mais elevados têm nos astros os seus corpos visíveis (Leis, 899-a-b)” (14).

 

A distinção entre o Divino Imanifestado e o surgimento do Demiurgo no plano de transição do Imanifestado/Imanifestado (15), justificam a sua já referida  designação como “Segundo Deus”, que “é a Sabedoria do Deus Supremo” (16).

 

O Demiurgo forma o Cosmos do Caos. É o vórtice que actua na Substância Pré-Cósmica (na Raiz da Substância, ou Mulaprakriti, como a denominam os vedantinos) e que a activa, despertando-a para a existência Cósmica. O Eterno Pensamento Divino Absoluto, no Imanifestado, volve-se  em Ideação Cósmica, com o Plano concreto para um Universo. A Mente Cósmica vem então à existência – passa da potência ao acto -, porque despertam os Ah-Hi (17), os Dhyan-Chohans (18), os deuses, as Potências Criadoras, os Filhos Radiantes da Aurora Manvantárica, as Estrelas que exsurgem das Trevas Primordiais e que passam a ser a substância e o continente dessa Mente Cósmica (19) ou Alma Universal  (20) ou Sofia ou Ennoia-Ofis (21) ou Binah (22) …

 

Damos novamente a palavra a Helena Blavatsky, em dois excertos da sua obra principal: “O Caos, segundo Platão e os pitagóricos, tornou-se a ‘Alma do Mundo’. O ´Primogénito’ (23) da Divindade Suprema nasceu do Caos e da Luz Primordial, o Sol Central. Esse ‘Primogénito’ não era, contudo, senão o agregado da Legião dos Construtores, que as teogonias antigas chamavam de Antepassados, nascidos do Abismo ou Caos e do primeiro Ponto”; “As diferentes cosmogonias mostram que a Alma Universal era considerada por todas as nações arcaicas como a Mente do Demiurgo criador; e que era chamada a Mãe, Sofia ou a Sabedoria feminina, pelos gnósticos; Sephira pelos Judeus e Sarasvati ou Vâch pelos hindus – sendo também o Espírito Santo um princípio feminino.”

 

O Universo é construído de acordo com os modelos dos Eide ou Ideias a que se referia Platão, e das quais o Demiurgo – a colectividade de Inteligências Espirituais que o integram – se serve para ordenar a Substância e transformar o Caos em Cosmos. Assim, o Demiurgo é o agente das Leis Divinas que regem o Universo.

 

III) Cada um dos Dhyâni Chohans, Inteligências Divinas, Potências Criadoras – ou deuses, por outras palavras – que, como dissemos, integram colectivamente o Demiurgo, o Logos, o Verbo Criador do Pensamento Divino, colaborando na construção, sustentação e direcção de todo o Universo objectivo, de cada uma das suas formas, de cada um dos seus átomos. Assim, todas as Entidades, no seu próprio plano de raiz divina – como deuses –, integram uma das grandes Hierarquias Criadoras, em que as Mónadas Humanas, os Homens Divinos se incluem. O Universo existe (ou é) trans-temporalmente no Pensamento Divino mas vai-se executando num longo devir, através do concurso de todas as unidades de vida divinas (as realidades íntimas de todas as existências) que vão progredindo, em graus cada vez mais elevados, através da activação da sua inteligência criadora latente. E todos somos co-responsáveis em tornar o Universo mais perfeito.

 

Os Dhyâni-Chohans ou Hierarquias Criadoras são mencionados nas tradições mais ocidentais (e, sem muito rigor, chamadas “monoteístas”) como Filhos de Deus, Homem Primordiais, Elohim, Anjos (diferentes dos lamentáveis e abusivos tratamentos que lhes são dados em literatura recentemente muito vulgarizada), Arcanjos, Tronos, Virtudes, Potestades, Dominações, Principados, Querubins, Serafins, Potências, Degraus, Anuphaim, Sete Espíritos diante do Trono, Anciãos, etc.

 

O Demiurgo e a Substância

O Ocultismo afirma a eternidade da Matéria, ou antes, da Substância, ou melhor ainda, do Espaço que é a sua matriz e essência supersensível. “A matéria é tão indestrutível e eterna como o próprio espírito imortal, mas (…) não como formas organizadas”(11). Reproduzimos aqui perguntas endereçadas a dois grandes Sábios e as respostas que estes deram: “Qual é a única coisa eterna no universo, independente de outras coisas? O Espaço. Que coisas são co-existentes com o espaço? (I) A duração. (II) A matéria.  (III)  O movimento, porque este é a vida imperecível (consciente ou inconsciente, conforme o caso) da matéria, mesmo durante o Pralaya (24)” (25). Deve salientar-se, pois, que, para o Ocultismo, não existe tal coisa como Matéria morta. A Vida Una e Omnipresente “… não só penetra mas é a essência de cada átomo da Matéria; e, portanto, ela não apenas tem correspondência com a Matéria mas possui também todas as suas propriedades…” (25). Como também já referimos inúmeras vezes, na concepção Esotérica, a Matéria não é apenas a Substância física que os nossos sentidos apreendem e que as ciências experimentais estudam, visto que existem níveis de substancialidade imensamente mais subtis, numa hierarquia septenária de Planos. Existe, por exemplo, substância ou matéria do Plano Mental… e de outros ainda mais elevados, habitualmente ditos Espirituais (em todos os Planos existem os dois pólos, Espírito e Matéria, interrelacionados, embora em diferentes condições e peso relativo). O que, afinal, a Ciência Oculta afirma é que nada é destituído de substância; que tudo tem, necessariamente, um substratum ontológico; e que o Ser, no nível primevo do Cosmos, é a Essência Una tanto do pólo Espírito, como do pólo Matéria.

 

Assim, o Demiurgo forma o Universo a partir de uma matéria prima já existente, porque eterna – a chamada criação ex nihil (a partir do nada) não faz sentido, porque nada pode ser nada, porque o nada não pode existir, excepto se dermos à palavra nada o sentido de “sem atributos”. Nos níveis inferiores da existência universal a matéria é mais densa, e as Ideias, de acordo com as quais os mundos são formados e evoluem, manifestam-se menos cristalinamente e também são menos elevadas e perfeitas as Potências Criadoras operantes. Como já referira Platão no “Timeu” (a sua principal obra cosmogónica), o Demiurgo não é omnipotente: produz o Cosmos tão bom “quanto possível” (30-b) e tem de conformar-se com os efeitos contrários da “necessidade” (47e-48a) – da necessidade da existência condicionada e da necessidade Kármica.

 

A importância da Cosmogénese Ocultista

Embora, haja quem possa entender árido e inútil abordar as questões mais subtis e profundas da Cosmogénese, a sua compreensão tem implicações incontornáveis nos paradigmas culturais, científicos, religiosos vigentes e que condicionam o mundo.

 

Por exemplo: a clara noção de uma Ser-dade (Be-Ness, na expressão de H. Blavatsky), como Princípio Absoluto, Incriado e Incriador (de qualquer coisa relativa) e, distintamente, do Logos ou Demiurgo, como “agregado colectivo de todas as inteligências espirituais criadoras” – mas não absolutas nem perfeitas, por isso que se manifestam no espaço e no tempo relativos , evoluindo para patamares cada vez mais amplos e elevados  (26), permite encarar o já referido – e dramático  – “problema do mal”; torna evidente a realidade da justiça no Universo, já que ele depende do querer colectivo de todos os Filhos do Divino; responde satisfatoria e plenamente à pergunta dos cientistas: “Se o Universo é obra de um Deus perfeito e Omnipotente,  como é que a Natureza parece revelar tentativa e erro, ou seja, tentativas falhadas?” (V., exemplificativamente, “Cosmos”, de C. Sagan); põe termo às perguntas “Deus existe?”, “Crê em Deus ou não?” e “Se Deus criou tudo, quem é que criou Deus?”, porque a resposta seria evidente e as perguntas descabidas e sem sentido: O Ser (o Espaço no sentido mais radical e profundo) é eterno e necessário.

 

José Manuel Anacleto

Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural

 

(1) Seja o mal físico, metafísico ou moral.

(2) O Senhor Buddha Siddharta Gautama referia-se aqui, naturalmente, a uma Divindade pessoal ou distinta do Universo, concepção que rejeitava. Porém, tinha TAT – O Absoluto Incognoscível em si mesmo – como pressuposto incontornável. O Budismo é às vezes considerado ateísta (somente) por recusar a existência de um Deus mais ou menos antropomórfico; e, nesse sentido, tal recusa é bem compreensível e louvável.

(3) Parte do que aqui escrevemos havia por nós sido expresso na série de conferências que deu origem ao livro “Para um Mundo Melhor” (Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 1997).

(4) A título meramente exemplificativo, cfr. “História da Filosofia” de Humberto Padovani e Luís Castagnola, obra com Nihil Obstat, Imprimi Potest e Imprimatur…

(5) As três “Pessoas” da Santíssima Trindade. Confunde-nos muitíssimo a frase muito repetida, nas Igrejas Cristãs, que Deus é uma Pessoa. Uma Pessoa!!!…

(6) Se intervém, se precisa de intervir, é (seria) porque a Ordem que dispôs não é perfeita…

(7) O primeiro da Bíblia.

(8) In “Ísis sem Véu”, de Helena Blavatsky (Ed. Pensamento, S. Paulo, 1990).

(9) Nem a autora destas palavras nem nós deixamos, entretanto, de ter profundo respeito pelo conhecimento oculto – cabalístico – existente no seio do Judaísmo.

(10) Cfr. “Discurso de Metafísica”. Leibniz (1646-1716) foi indiscutivelmente uma das maiores inteligências da moderna civilização ocidental. Como faz notar Helena Blavatsky, conciliando o seu sistema com o de Spinoza (e abstraindo dos eufemismos a que a ditadura ideológica da época os obrigava), têm-se muitas das noções fundamentais do Ocultismo.

(11) Cfr. “A Doutrina Secreta”, de Helena P. Blavatsky (Ed. Pensamento, S. Paulo, 1973).

(12) Tratámos também desta temática, mais amplamente do que neste artigo, no nosso livro “Transcendência e Imanência de Deus” (Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 2001).

(13) No pequeno Cosmos que é o homem, o (seu) Logos é o 7º Princípio (Atman; o Espírito, a Vontade Espiritual); Cfr. “Consciencia e Inmortalidad”, de Subba Row (Ed. Kier, Buenos Aires, 1994).

(14) “História da Filosofia, Vol. I” de Nicola Abbagnano (Ed. Presença, Lisboa, 1976)

(15) … Nível ou momento por vezes identificado com o 2º Logos. Cfr. “The Divine Plan”, de Geoffrey Barborka (Theosophical Publishing House, Adyar, 1964) e “Transactions of the Blavatsky Lodge” (The Theosophy Company, Los Angeles, 1987).

(16) Filon, «Quoest, et Solut ».

(17) Ah-Hi – Dragões da Sabedoria ; Dhyan-Cohans.

(18) Dhyan-Chohans – « Senores da Luz » ou « Senhores da Meditação Profunda”. As Inteligências Divinas encarregues da construção e superintendência do Cosmos.

(19) Mahat, em sânscrito.

(20) Ou Anima Mundi.

(21) Entre alguns Gnósticos, nomeadamente Basílides e os Ofitas.

(22) Binah – Uma das Três Supremas da Árvore da Vida. Entendimento, Inteligência, Leis regentes do Universo. Chamada o Grande Mar e a Mãe Suprema ou Grande Mãe e equivalente a Sofia.

(23) Quando São Paulo falava de Cristo como o “primogénito” referia-se ao Logos, ao Cristo Cósmico. Há uma analogia precisa entre o Macro e o Microcosmo. O Homem Espiritual vem a ser o Logos dos seus veículos. Lembremos outra frase de Paulo: “Cristo em nós, esperança de glória”.

(24) Pralaya – um Período de noite ou repouso cósmico, total ou relativo. O contrário de Manvantara (período de actividade cósmica).

(25) “Cartas dos Mahatmas para A. P. Sinnett” (Ed. Teosófica, Brasília, 2001)

(26) Sobre esta questão, cfr. o que escrevemos nos nº 10 –  artigo “Ordem e Inteligência do Cosmos” – e 15 – artigo “A Matéria na Perspectiva do Ocultismo” –  da Biosofia.

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