Aproximando-se eleições, lá vem, como sempre, toda a gente falar no emprego. O paradigma, já estafado e gasto, da dependência do trabalho de produção, seja de mercadorias ou serviços, continua a ser alimentado. A imaginação ou a ousadia não dá para mais, sem falar na necessidade de manter clientelas, sejam laborais ou patronais.
Não podemos deixar de concordar, no essencial, com a afirmação de um livro que lemos recentemente:
“O novo fanatismo do trabalho, com o qual esta sociedade reage à morte do seu ídolo, é a consequência lógica e o estádio final de uma longa história. Desde a época da Reforma, todas as forças dirigentes da modernização ocidental pregaram a santidade do trabalho. Sobretudo nos últimos cento e cinquenta anos, todas as teorias sociais e correntes políticas foram dominadas pela ideia do trabalho. Socialistas e conservadores, democratas e fascistas, combateram entre si de toda a maneira e feitio, mas apesar do ódio mortal que votaram uns aos outros, sempre sacrificaram em comum ao ídolo do trabalho. ‘L’Oisif ira loger ailleurs’ (‘O ocioso irá viver para outro lado’), dizia o texto do hino da Internacional dos trabalhadores – o eco macabro dessas palavras foi a divisa ‘Arbeit macht frei’ (‘O trabalho liberta’), exibida por cima do portão de Auschwitz. As democracias pluralistas do pós-guerra fizeram todas as suas juras em nome da ditadura perpétua do trabalho. E até a Constituição da muito católica Baviera aconselha os seus cidadãos na mais pura tradição luterana: ‘O trabalho é a fonte do bem-estar do Povo e goza de especial protecção por parte do Estado’. No final do século XX todas as contradições ideológicas se esbateram. Apenas ficou o dogma comum e impiedoso segundo o qual o trabalho é o destino natural do Homem. (…)
Quem hoje em dia perguntar a si próprio qual o conteúdo, o sentido é continuar a funcionar a qualquer preço, e ponto final. Quanto à descoberta do sentido, para isso existem os departamentos de publicidade, exércitos inteiros de animadores e de psicólogas de empresa, os consultores de imagem e os ‘dealers’ da droga. Quando se papagueia interminavelmente o lema da motivação e da criatividade, é certo e sabido que de uma e da outra já nada sobra…, a não ser enquanto auto-engano. É por isso que hoje as capacidades de auto-sugestão, de autopromoção e de simulação de competências se contam entre as virtudes mais importantes dos gestores e das trabalhadoras especializadas, das estrelas dos media e dos contabilistas, das professoras e dos arrumadores de automóveis”1 .
A verdade é que, naturalmente, a legião de desempregados e, isso sim bem pior, dos excluídos, dos empurrados para a miséria, para a indigência, para a marginalidade, não cessa de aumentar. E não vai cessar, porque a própria optimização da eficiência do trabalho (incessantemente exigida) e a sua crescente substituição por máquinas é uma direcção imparável. Só a ganância ilimitada de lucro de alguns (que, naturalmente, segundo a lei da oferta e da procura, recrutam trabalhadores em condições cada vez mais precárias em todos os aspectos) e a viciação no emprego ou no trabalho de outros, que nisso, ilusoriamente, pretendem fundamentar a sua importância e dignidade, é que permitem continuar a fingir que nada se passa.
O lobo e o cordeiro complementam-se afinal, porque a natureza do cordeiro só aparentemente é distinta do lobo. O cordeiro vai dócil e alegremente para a boca do lobo, convencido de que faz algo fantástico com o seu trabalho, ao qual está disposto a sacrificar tudo. Nesse “tudo”, inclui-se a dignidade, porque tudo se está disposto a aceitar, até ao rastejo, para obter ou manter o emprego; a boa convivência, porque, na competição entre pessoas e grupos laborais, valem todos os meios; o tempo para criar, para conviver a sério (não a conversa banal e vazia dos empregos), para partilhar, para contemplar, para nada fazer (sim, porque no nada fazer, se pode fazer tudo); a própria saúde mental e física imolada a uma auto-exigência de fazer cada vez mais, conduzindo ao que Byung-Chul Han chama, com certeira propriedade,” a sociedade do cansaço”2.
Esgotado o modelo, e felizmente, o que verdadeiramente importa é construir outro modelo civilizacional – ou talvez um não-modelo, em que cada um possa criar livremente, e fazer do seu tempo o que entender, desde que não cause dano a outros. A dignidade de todos os seres fundamenta-se… em ser, não em fazer. Tantas vezes, a pulsão do fazer anula, sepulta e silencia o ser, e as suas mais belas florações.
Num livro editado pelo Centro Lusitano de Unificação Cultural editado em 1996, podia ler-se o seguinte:
“Nos nossos dias, contudo, existem já homens e mulheres capazes de realmente estarem concentrados em ser, e de não quererem mais do que ter o indispensável para usufruírem de condições de vida razoáveis (sendo esta razoabilidade, evidentemente, muito distinta dos hipertrofiados e autocentrados critérios de pretensa razoabilidade que se generalizaram nos chamados países industrializados ou nas classes socialmente proeminentes de todas as nações); existem já homens e mulheres capazes de serem suficientemente fortes e despertos no seu interior para não precisarem de aferir a sua razão de viver pela posse de um emprego ou pelo exercício de uma profissão no sistema produtivo ou em qualquer esfera do fazer material; existem já homens e mulheres que, no entanto, não consumiriam em ‘ociosidade o seu tempo livre’ (para empregarmos uma expressão de uso habitual), utilizando-o, sim, numa preciosa elaboração interior e em formas de expressão úteis, edificantes e alentadoras para a comunidade.
Essa é uma base de partida para resolver o ‘problema do desemprego’ e, ao mesmo tempo, para começar a construir uma sociedade fundada em valores mais elevados – na qual, necessariamente, os cidadãos serão chamados a uma co-responsabilização no bem-estar colectivo, no progresso moral da Humanidade, na rentabilização dos recursos e na equidade do acesso de todos ao seu usufruto”.
Passado quase um quarto de século, subscrevemos inteiramente essas palavras.
Trabalho?! Sim: o da compaixão, o do serviço ao bem geral, o da partilha de tudo o que realmente é valioso, e que não são os vícios do consumo e da distração (des-atenção).
1 Cfr. Grupo Krisis, Manifesto Contra o Trabalho, Antígona, Lisboa, 2ª ed., 2017, pp. 27-9.
2 Título de um livro de sua autoria. Em Português: Relógio de Água, Lisboa, 2014.