Biosofia nº 32

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ESOTERISMO DE A a Z

 

Ordem

Nos anos mais recentes, a noção de Ordem é pouco popular, em especial entre os mais jovens e em alguns países ocidentais, incluindo os meios ditos de espiritualidade; contudo, se bem entendida, não implicando rigidez nem tiranias, a ordem é fundamental para a evolução e a felicidade autênticas, tanto individuais como colectivas.

Em grande medida, a história política, social e económica dos últimos três séculos tem oscilado dentro do binómio ordem e liberdade, pelo menos nos países europeus e do continente americano.

 

Os últimos séculos… entre a Ordem e a Liberdade

Assim, às monarquias absolutas (e ao “despotismo esclarecido”) do século XVIII, sucederam os regimes liberais do século XIX, na esteira da Independência e da Constituição dos Estados Unidos da América (1776), e da Revolução Francesa (1789). Um pouco por todo o lado, houve revoluções liberais no século XIX. O liberalismo na esfera política estava ligado ao liberalismo social e económico, o último dos quais teorizado, nomeadamente, por Adam Smith (1723-1790). Entretanto, já no final da centúria de 1800 se difundiam largamente ideias de uma maior intervenção ordenadora do Estado na vida económica e social, com vista a atenuar desigualdades e a promover as condições dos mais desfavorecidos – designadamente, em face das terríveis condições a que estavam submetidos os operários na sequência da chamada Revolução Industrial. Expandiram-se as ideias marxistas e socialistas – desde as definidamente comunistas, até as de matriz social-democrata, como as que vieram a tomar assento na paradigmática Constituição de Weimar (Alemanha, 1919) – ou, por exemplo, a assim chamada “doutrina Social da Igreja” (Católica), surgida, de algum como modo como reacção às primeiras citadas (e depois de séculos de quase total inércia, perante a miséria do mundo, que se pretendeu resolver com esmolas (1)), a partir da Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII (1891).

 

A partir da segunda década do século XX, instalaram-se regimes de tipo ditatorial, de diferentes matizes e áreas políticas, mas sempre com um acento tónico muito grande na ordem, exagerada e brutal; e, depois da segunda guerra mundial, um conceito de economia planificada, ordenada, ganhou terreno não apenas nos países que passaram a estar sob a influência soviética, como também em países de democracia ocidental (como, por exemplo, a Grã-Bretanha).

Nos últimos 10/20 anos do século XX, e nos anos já decorridos da presente centúria, o liberalismo volta a ganhar terreno, em termos económicos e sociais. Até o regime comunista da China o acolheu em boa medida, na esfera económica. No entanto, ao mesmo tempo, discute-se a necessidade de uma nova ordem mundial, a União Europeia avança na concertação de ordenamentos e regras comuns aos estados-membros, os livros sobre organização empresarial e afins obtêm grande sucesso…

 

A Verdadeira Ordem e a verdadeira Liberdade são indissociáveis

Ainda assim, é frequente pensar-se na liberdade e na ordem como potencialmente antagónicas. Para o Esoterismo, porém, a dicotomia, em termos de oposição, não tem razão de ser: a verdadeira ordem é a plenitude da liberdade, e a Liberdade verdadeira assenta na Ordem mais perfeita. O Bem reside no enlace entre a Lei (ou Ordem) e a Liberdade. Conforme escreveu Humberto Álvares da Costa: “Liberdade, Lei e Bem são indissociáveis. É a tripeça da vida espiritual” (2).

 

A verdadeira Ordem, no mais elevado conceito esotérico, é a Lei (Lei Divina, Lei do Ser, Lei do Todo-Natureza) interiormente assumida, pela qual todos os diferentes níveis do Ser se adequam com o mais elevado paradigma ou arquétipo, que é o divino por excelência.

Significativamente, o 7º Raio Solar, em Sânscrito, designa-se por Svaraj (3), e esta palavra significa “auto-governo”, “governo próprio” (sva, próprio; raj, governo). Está ímplicita a associação, a consonância entre ordem, lei, governo, e a liberdade de cada um, no seio do Todo.

Se efectivamente estamos no início de uma Era de especial afluxo e ambiência do 7º Raio, coincidente com uma (4) Era de Aquário, se efectivamente as suas características são as de Ordem e Organização libertadoras, se efectivamente os cerca de 300 anos precedentes constituíram um sub-ciclo do 7º Raio na Era do 6ª Raio, faz sentido que as oscilações políticas, sociais e económicas nestes últimos séculos se estejam a dar entre os conceitos de Ordem e Liberdade – movimentos pendulares que, oportunamente, poderão alcançar um adequado equilíbrio.

Do mesmo modo, observemos que é nos ultimos séculos que a noção de trabalho ordenado, organizado – desde as cadeias de produção e interdependência dos contributos de muitas linhas de acção laboral até… aos sinais reguladores do trânsito ou à concatenação de horários de meios de transporte diferentes mas complementares –, tem ganho uma ênfase crescente. Ainda na mesma esteira, vai o recurso a órgãos auxiliares do trabalho humano – maximamente, na actualidade, os computadores. Cabe notar a relação entre órgão e organização, e entre organização e ordenação. Idealmente, esses órgãos deveriam libertar-nos de muitas dependências…

De resto, a importância, no domínio cultural, filosófico e científico, das questões do método e da epistemologia, vai na mesma direcção.

No Evangelho Segundo São João (8:32) encontramos uma das mais conhecidas frases atribuídas a Jesus: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”.

Ora, na Árvore da Vida, a Coluna Feminina de Sophia (“ela à esquerda”, na expressão significativa e exacta (5) dos Gnósticos Cabalistas de há dois milénios atrás), a de Binah, Geburah e Hod, é a do Rigor, da Disciplina, das Regras, da Justiça, da Lei, do Conhecimento Objectivo, da Verdade. Assim, o Conhecimento, a Ciência integral, a Verdade e a Ordem libertar-nos-ão – segundo o Ensinamento Cristão original.

Estranharão provavelmente alguns leitores a afirmação de que a Ordem nos liberta. Tomemos, porém, um exemplo que poderá ilustrar essa noção e melhor a fazer entender. Quando estamos dependentes de um vício (que inicialmente nos seduziu, mas que com o tempo nos aprisionou, trazendo-nos maleitas, transtornos e infelicidade), como nos poderemos libertar dele? Unicamente impondo-lhe uma ordem (no sentido de ordenação, não no de voz de comando), provinda de um nível superior do nosso Ser, e por isso capaz de ver com lucidez e de se sobrepor às cadeias viciosas da dependência – um nível de ser que se não deixou condicionar e que, em vez disso, pode determinar as regras correctas e romper as prisões. Sim, é essa Ordem, é essa Ordem superior que nos liberta… “O que nos liberta é o Bem e a Lei Divina” (2).

 

Regras no Caminho

Este domínio da natureza inferior por uma ordem, por regras próprias do nosso Eu Superior – que é o nosso Eu real – está maravilhosamente exposto, referindo-se aos discípulos que batem à porta da verdadeira Iniciação, no livro Luz no Caminho, de Mabel Collins:

“1 – Distancia-te na batalha que se irá travar e, ainda que combatas, não sejas tu o guerreiro.

2 – Procura o guerreiro e deixa que ele combata por ti.

3 – Recebe dele as ordens para a batalha, e obedece-lhe.

4 – Obedece-lhe, não como se ele fosse um general, mas como se fosse tu-próprio e as tuas palavras faladas a expressão dos teus desejos secretos; porque ele és tu-próprio, mas infinitamente mais sábio e mais forte do que tu és. Procura-o bem; se não, na febre e na pressa da batalha, podes passar por ele, e ele não te conhecerá a não ser que o conheças. Se o teu grito encontrar o seu ouvido atento, então ele lutará em ti e encherá o inerte vácuo interior. E se for assim, então poderás atravessar a batalha calmo e sem cansaço, ponde-te de lado e deixando que ele se bata por ti. Então te será impossível errar uma cutilada. Mas se o não procurares, se passares por ele, então não haverá para ti salvaguarda. O teu cérebro ondeará, [a batida de] o teu coração se tornará irregular, e na poeira do prélio te falharão a vista e os [demais] sentidos, e não poderás distinguir os teus amigos dos teus inimigos.

 

Ele és tu próprio. Tu, porém, és apenas finito e susceptível de erro; ele é eterno e está seguro. Ele é a verdade eterna. Uma vez apossado de ti e tornado o teu Guerreiro, nunca te abandonará; e no dia da Grande Paz tornar-se-á uno contigo” (6).

 

Face ao exposto, constatamos, com naturalidade, que grandes Instrutores Espirituais tenham estabelecido métodos, passos, mandamentos – por exemplo, os oito passos do sistema Yoga exposto por Patanjali, o Nobre Caminho Óctuplo do Buddha Gautama, os mandamentos do Judaísmo e do Cristianismo. Eles visam justamente, impor uma Ordem libertadora (mesmo que prévia a regras mais elevadas, as do Caminho da Iniciação). Num outro excerto do Evangelho segundo João (14:17-7), encontramos estas palavras: “Se me amais, guardai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre. O Espírito de Verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem o conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós”. Guardar os mandamentos, a fim de purificarmos a nossa natureza inferior, ou seja, a substância dos nossos corpos e veículos (físico, astral e de psiquismo inferior) é condição para que a verdade se nos desvele; e a verdade nos libertará… Note-se, a este propósito, que no Séphèr Iétzirah, texto tradicional da Cabala judaica, Binah é referida como “A Inteligência Santificadora”.

 

Ao contrário do que por vezes se supõe, a Ordem, a verdadeira Ordem, não nos torna autómatos (justamente porque o indíduo, no seu interior, lhe adere), e muito menos nos impede de ser bons; pelo contrário, a verdadeira Ordem é a escolha do Bem, em nós e à volta de nós. Não devemos confundir o Bem ou a Compaixão com fraqueza ou cedência. Dion Fortune, pseudónimo da cabalista inglesa Violet Mary Firth (1890-1946), escreveu acerca disto palavras que, temos de reconhecer plenamente, são deveras acertadas:

“Caridade em excesso é obra de um louco; paciência em excesso é o sinete de um covarde. Necessitamos de um equilíbrio justo e sábio, que contribui para a felicidade, a saúde e a franca compreensão de que sacrifícios são necessários para obtê-las.

(…)

Que falta nos fazem as virtudes espartanas de Geburah [a 5ª Sephirah da Árvore da Vida: Justiça, Inteligência Radical] nesta época de sentimentalismos e neuroses! Quantas quedas não poderíamos evitar se esse Cirurgião Celestial pudesse executar o corte limpo que tem chance de curar, evitando assim o compromisso fatal e a iresolução doentia, que é como uma ferida aberta e ameaçada de gangrena!

Além disso, se não houvesse uma mão forte ao serviço do Bem no mundo, o Mal se multiplicaria. Se não é bom apagar um tição quando este ainda arde, é igualmente mau deixar a cinza acumular-se, evitando a utilização do atiçador. Há um momento em que a paciência se torna fraqueza, desperdiçando o tempo do melhor homem, e em que a misericórdia se torna uma loucura e expõe o inocente ao perigo” (7).

 

A Ordem Criadora

A Ordem, sobretudo a superior ordenação mental, é fundamento essencial de qualquer criação ou trabalho – “A Ordem surge do Caos”… A melhor tradição helénica, Pitagórica e Platónica, sempre pôs em relevo a importância da Geometria e da Ordem Matemática, como escrita na qual estão impressas as leis divinas (8). Numa versão cristianizada, afirma-se que “Deus (9) geometriza”, e é já sobejamente conhecida a expressão maçónica “O Supremo Arquitecto do Universo”.

Cabe aqui explicitar que pode haver – ou antes, que há – Ordem nos diversos Planos do Universo, como também nos diferentes Princípios Humanos. De modo algum restringimos o conceito de Ordem ao domínio físico.

As criações humanas são geralmente medíocres e frágeis, precisamente porque se limitam ao imediatismo dos fenómenos e estímulos físicos, em função dos quais se reage, para tentar obter objectivos superficiais. É um processo de escravidão, porque é o jogo e a pressão das circunstâncias externas que leva a fazer isto ou aquilo.

Num outro patamar bem diferente, os deuses (e, à sua semelhança, na escala respectiva, os melhores entre os filhos dos homens), livres do condicionalismo externo, criam antes de tudo planos gerais, ideias globais, abarcantes, sintetizando todos os aspectos a considerar. Fazem-no de acordo com os modelos Noéticos (10), contidos na Mente Divina (11) ou Razão Ordenadora do/no Cosmos (o Kosmos Noetos). Só depois de claramente definido esse plano global, se começa a operar na sua construção material. Essa contenção da acção física imediata, desconexa e cega, antes de que uma correcta ideação ordenadora esteja completa, é da maior importância para que se crie o-que-deve-ser-criado de acordo com o-modo-como-deve-ser-criado. Está na linha de Binah, pois trata-se da Inteligência ordenadora da criação, de acordo com Leis ou Regras divinas: “… embora a matéria tenha as suas raízes em Binah, a matéria, não obstante, tal como a conhecemos, é de uma ordem de ser muito diferente da Sephirah Suprema [a referida Binah, o Entendimento, a Inteligência Objectiva, a Grande Mãe] em que reside a sua essência. Binah, a influência primordial formativa, criadora de todas as formas, está atrás e além da substância manifesta” (12).

Ganharíamos muito em criar dessa maneira, em vez de, movidos pelo desejo sensorial, pela euforia egotista ou pelo desequilíbrio emocional, nos precipitarmos em actos que, desordenados, ou sem uma ordem correcta, tantas vezes são causa de males, de fracassos e sofrimentos.

A aprendizagem do pensamento e da criatividade ordenados é, pois, fundamental. Quem contribuir para tal, estará a efectuar um trabalho realmente abençoado. Não, o génio e a inspiração não surgem do acaso. Sob a aparente não-organização, sob o aparente não-método, houve uma prévia aprendizagem (nesta vida e/ou em outras anteriores) dessa superior ordenação, que se arreigou no ser, e que se manifesta e actua espontaneamente, brotando em maravilhosas criações…

 

José Manuel Anacleto

Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural

 

(1) Nunca se resolverá com esmolas, nem mesmo com simples medidas político-sociais, porque as raízes da miséria são mais profundas. Ainda assim, a ideia de um plano ordenado de acções políticas, económicas e sociais, é um passo em frente, por constutuir uma passagem do simples domínio emocional-passional para o nível mental.

(2) “Carta Aberta ao Mundo – A Parábola dos Homens Cegos”, Portugal Teosófico, STP, 2001.

(3) Glossário Teosófico, de Helena Blavatsky, Ed. Ground, S. Paulo.

(4) Uma e não “a”. É que nos exageros “new Age”, esquece-se que já houve muitas – milhares! – de Eras de Aquário e muitas-Novas-Eras-que-já-se-fizeram-velhas…

(5) Exacta, dado ser uma alusão cosmogónica e macrocósmica. Seria diferente, em termos microcósmicos.

(6) Op cit., Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1916; págs. 18 e 19.

(7) A Cabala Mística, Ed. Pensamento, S. Paulo, 1984; págs. 148-9.

(8) Acerca disto, ver o artigo “Os Sólidos Platónicos”, de Isabel Nunes Governo, publicado no nº 7 da Biosofia (Centro Lusitano de Unificação Espiritual, Lisboa, 2000).

(9) Escrevemos “numa versão cristianizada” porque, originalmente, na Filosofia Grega, especialmente Platónica, esse Deus era o Demiurgo (o deus secundário, porque criador, saído da Essência Eterna), integrado por uma colectividade de deuses ou poderes criadores, e nunca o antropomorfizado Deus do Cristianismo das Igrejas. Sobre esta temática, remetemos para o nosso artigo “Demiurgo”, publicado no nº 18 da Biosofia (Centro Lusitano de Unificação Cultural, Lisboa, 2003).

(10) Noético, deriva de Noús. Entre os Neoplatónicos, designadamente Plotino, era o 2º elemento da Tríade Uno-Noús-Alma. O Noús, habitualmente traduzido por Intelecto, encontra, a nosso ver, mais adequada expressão em “Inteligência Espiritual”. Corresponde ao mundo das Formas ou Ideias, no sentido Platónico.

(11) Também aqui, não se trata da Mente de um Deus, mas sim da Inteligência criadora, reguladora e mantenedora de um Cosmos, síntese de todas as Inteligências Espirituais, os Deuses ou Mónadas activas.

(12) Dion Fortune, op. cit., pág. 125.

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