Biosofia nº 16

3.50

Categoria:

Artigo

 

O OLHAR DA CIÊNCIA

‘Transdução de Sinais’: Pura ‘Tagarelice Celular?’

 

Creio que concordará comigo se eu disser que o corpo humano é uma máquina verdadeiramente prodigiosa, mas já pensou bem na sua arquitectura e no seu modo de funcionamento? O que é que permite a esta máquina magnífica operar? O que é que se passa dentro de nós cada vez que emitimos um pensamento, que formulamos uma questão ou respondemos a uma pergunta? O que acontece quando comemos? Quando nos movemos? Quando estamos doentes, e durante a nossa convalescência? Quando sentimos desilusão ou quando o Sol invade o nosso coração, aquecendo a alma e fazendo-nos sentir todo o amor que nos rodeia? Em duas palavras: ‘tagarelice celular’!

 

Todos os organismos vivos estão organizados de uma forma eminentemente hierárquica

O corpo humano desempenha um sem número de funções, todas elas muitíssimo complexas, mesmo aquelas que nos parecem as mais triviais! Tal só é possível porque os nossos corpos ‘dividem’ as tarefas requeridas para a execução dessas funções de uma forma altamente hierárquica. Tal como já expusemos num número anterior da Biosofia [1], o corpo humano é constituído por vários sistemas (nomeadamente, o sistema nervoso); os sistemas são constituídos pelos órgãos (tais como o cérebro); os órgãos são constituídos por diversos tipos de tecidos (tecido nervoso, por exemplo); e os tecidos são constituídos pelas células (por exemplo, os neurónios) (Figura 1). Na realidade as células são os tijolos que constituem todos os seres vivos.

 

Talvez o leitor nunca tenha pensado nisto, mas como é que o nossos corpos ‘sabem’ o que fazer? Por exemplo, como é que os músculos das pernas sabem que têm que correr quando o possuidor desses músculos se vê frente a frente com um leão?! É uma questão de vida ou de morte e a verdade é que as pernas se põem a mexer (literalmente!) em fracções de segundo! Talvez nunca tenha reparado, mas a razão pela qual isto é possível é porque as nossas células são umas ‘tagarelas’ e passam a vida a falar umas com as outras, descrevendo tudo o que se passa à sua volta! A agravar esta tendência para a ‘coscuvilhice’, as células não sabem trabalhar (nem estar!) sozinhas. As células vivem em comunidade e trabalham em cooperativas, tudo em prol do bom funcionamento desta máquina prodigiosa que dá abrigo a cada um de nós… A ‘tagarelice celular’ é conhecida entre a comunidade cientifica por ‘Sinalização’ ou ‘Transdução de Sinais’ e é, precisamente, o tema central deste artigo.

 

Tagarelice celular

A transdução de sinais é absolutamente vital para o bom funcionamento da célula e, consequentemente, do corpo humano. Esta disciplina da Biologia Molecular estuda a forma como as células falam umas com as outras. Trata-se de um diálogo notável! Como veremos mais adiante, é perfeitamente incrível a precisão e coordenação desta comunicação, principalmente se tomarmos em consideração que uma pequenina célula recebe e interpreta várias mensagens de cada vez. Imagine!…

 

Atenção, fomos invadidos!

(Numa manhã cinzenta, no princípio do Inverno)…

…Tal como já vai sendo hábito, mal chega o frio chegam também as constipações e as gripes. Não é muito animador! É cedo, o metropolitano está cheio e, perto de si, está um ‘desgraçado’ de um passageiro que não pára de espirrar e de tossir… Dois ou três dias depois, o leitor sente-se febril, com imensos arrepios e frio e, pior, desagradáveis dores musculares, já para não mencionar uma certa dificuldade em respirar. Está visto: apanhou a gripe do ‘companheiro de viagem’! Passados uns 4-5 dias, começa a recuperar, já não tem febre e, da gripe, resta apenas um ‘nariz fungão’ e alguma tosse. O seu corpo – essa máquina estupenda – conseguiu vencer o vírus! Mas como?!

 

Quando o outro passageiro espirrou e/ou tossiu, libertou partículas do vírus que o tinha atacado. Estas foram inaladas por vários passageiros. Aqueles cujo sistema imunológico não estava preparado para lutar de imediato com esse vírus, apanharam a gripe. Desde que o vírus entrou dentro do seu corpo, até ao momento em que foi dominado, as suas células estiveram a trabalhar horas extras, falando umas com as outras continuamente para tentar resolver o ‘problema’.

 

Quando um vírus infecta um organismo, nem todas as células que compõem esse organismo são afectadas. As que o são, regra geral, morrem, mas não sem antes avisarem as outras células vizinhas. Os vírus não só são os micróbios mais pequenos mas são também os seres vivos mais diminutos. Os vírus são totalmente parasitas: um vírus isolado é apenas uma partícula inerte de matéria que não se pode alimentar, crescer ou multiplicar. No entanto, mal se ‘atrela’ a uma célula, sofre uma metamorfose e transforma-se, de repente, no mais temível pirata! Invade-a e ‘reorganiza’ então todas as funções celulares em seu proveito!!! Ora, não surpreendentemente, o ‘vírus perfeito’ precisa que a célula hospedeira sobreviva para lhe fornecer um tecto e recursos para ele se multiplicar e propagar. Felizmente, na maioria dos casos, as tagarelas das nossas células conseguem controlar bem a situação (tal como na maioria das gripes).

 

Mal o vírus se ‘atraca’ à célula, esta grita: ‘Alerta! Fomos atacados!!!’ E as células possuem uma forma muito engenhosa de transmitir este tipo de sinais. Para compreendermos como tal acontece, é preciso relembrar que a célula se assemelha a um balão de água que engloba todos os organelos necessários para o seu funcionamento, incluindo o núcleo com o DNA (Figura 2). O DNA é o material genético que codifica as proteínas. Por outras palavras, o DNA é o cérebro da célula enquanto que as proteínas são as suas mãos; elas são os soldados que executam todas as funções celulares, incluindo a ‘tagarelice’, e são também elas as próprias mensagens (isto é, os temas da tagarelice).

 

É na superfície das células, entrosados na membrana celular, que estão localizados os receptores. Estes, não só recebem as mensagens vindas das células vizinhas (e, na verdade, também de células amigas que vivem mais longe), mas encarregam-se igualmente de fazer a mensagem chegar ao interior da célula, onde esta pode ser interpretada e, digamos, processada. Em termos mais objectivos, um receptor é como um marco do correio onde colocamos as cartas e postais (ou, em termos científicos, os ligandos), que são depois recolhidos pelos carteiros (no contexto celular, as proteínas) e entregues ao destinatário (o núcleo onde reside o DNA), que lê e interpreta a mensagem. E assim como existem marcos do correio diferentes e separados para cartas diferentes (correio normal, correio azul, correio internacional, encomendas), também existem receptores diferentes para ligandos diferentes.

 

No caso da gripe, as moléculas que dão o alarme (as ‘cartas’) são chamadas Interferons (IFNs). A sua mensagem é transmitida quando os IFNs se ligam aos seus respectivos receptores (‘marcos do correio’), os receptores dos Interferons (IFNR). Os IFNs são a nossa primeira linha de defesa contra as infecções virais. Estão encarregues de impedir a replicação (multiplicação) do vírus e, consequentemente, o agravamento da infecção. Os IFNs são aquilo que os cientistas chamam citocinas pleiotrópicas, ou seja, são pequenas moléculas solúveis que circulam no nosso sangue e que medeiam interacções entre as células, interacções essas que podem ter resultados bastante diversos. Para além de interferirem directamente com a replicação do vírus, os IFNs também modulam o sistema imunológico, o qual é o responsável pela nossa protecção contra os microorganismos que nos são nefastos. (Este tópico foi explicado pelo Dr. Bruno Santos, em detalhe, num artigo anterior da Biosofia [2]). Aqui, as infecções virais são apenas mencionadas como um exemplo de um tipo de ‘sinalização celular’, já que nos permitem apresentar ao leitor um paradigma de sinalização, que envolve os IFNs e as ‘cascatas de fosforilações’, tão vulgarmente utilizados pelas nossas células quando falam umas com as outras.

 

Depois de serem recebidas, como são as mensagens lidas e processadas?

Quando o IFN se liga ao seu respectivo receptor (IFNR), o receptor sofre uma ‘pequena’ alteração, através da adição de um fosfato. Um receptor é uma proteína e, como tal, assemelha-se a um colar de pérolas, em que cada pérola é um aminoácido (os tijolos das proteínas). Três tipos de aminoácidos – a Tirosina, a Serina e a Treonina – podem ser modificados através da adição de um fosfato. Na Bioquímica, os fosfatos funcionam como interruptores: uma proteína sem o fosfato (isto é, que não esteja fosforilada) encontra-se inactiva, enquanto que a mesma proteína fosforilada está na sua forma activa. Na verdade, a transferência de fosfatos de umas proteínas para as outras é um fenómeno muitíssimo comum nas nossas células e é um mecanismo de regulação absolutamente vital. À primeira vista, pode parecer estranho que uma alteração tão pequena possa ter consequências tão drásticas para a proteína que é fosforilada e, consequentemente, para a célula onde estes eventos decorrem mas, na realidade, não é nada estranho! A sequência das proteínas determina a sua forma (estrutura) e, inevitavelmente, a sua função, e basta uma pequena alteração nessa sequência para alterar a estrutura da proteína… Na sua generalidade, as fosforilações observadas nos receptores facilitam a interacção desses mesmos receptores com a próxima proteína que vai ‘distribuir’ a mensagem (o ‘carteiro’!). A uma fosforilação inicial seguem-se muitas outras fosforilações de uma série de proteínas (de uma forma análoga a atletas – ‘estafetas’ – a correrem), até essa mesma mensagem chegar ao núcleo, o cérebro da célula. Aqui, a mensagem é lida e interpretada. Por outras palavras, através de uma ‘cascata de fosforilações’, a mensagem passou do exterior da célula para o seu interior e daqui viajou até ao núcleo fazendo com que o DNA dessa mesma célula começasse a dirigir a produção de muitas outras proteínas que, então, irão executar as instruções contidas na mensagem inicial.

 

Regressando ao nosso exemplo de uma infecção viral (Figura 3): o IFN (‘mensagem’) liga-se ao receptor (IFNR, ‘marco do correio’), resultando na fosforilação (‘carimbo’) de uma proteína que se encontra associada com ele, chamada JAK1 (‘primeiro carteiro’). Esta proteína, por sua vez, ao fosforilar a Tyk2, uma proteína vizinha, também ela associada ao IFNGR, entrega-lhe a mensagem e termina aqui o seu trabalho. Na realidade, a situação é mais complexa e pensa-se que a Tyk2, depois de fosforilada pela JAK1, fosforila um ‘bocadinho mais’ a JAK1, amplificando assim o sinal. Ou seja, as duas proteínas embarcam numa enorme tagarelice celular, até se decidirem a prosseguir o seu trabalho: fazer com que a mensagem passe à estação do correio seguinte e, finalmente, chegue ao seu destinatário (o DNA no núcleo). Assim, depois de ‘carimbadas’, a JAK1 e Tyk2 ‘carimbam’ outras proteínas que, apesar de não estarem fisicamente associadas com o receptor, se encontram próximo, no citoplasma da células. Estas proteínas, chamadas STAT1 e STAT2, dirigem-se para o receptor, porque ele próprio foi carimbado pela JAK1 e Tyk2. Aqui, as STATs recebem, também elas, um fosfato, ficando deste modo activadas (ou seja, a mensagem foi transferida para as STATs). Após serem carimbadas as STATs, dão a mão uma à outra e dirigem-se para o núcleo; no entanto, para não se enganarem no caminho, juntam-se a uma terceira proteína chamada IRF-9, que se encarrega de orientar as STATs para o local certo. A ‘mensagem’ chegou ao seu destino!

 

E agora? Bem, agora o cérebro celular, o DNA, ordena a produção de novas proteínas que, no nosso exemplo, vão não só interferir com a replicação do vírus, mas vão também destruir as células infectadas para evitar que o vírus se espalhe pelo corpo todo. Isto é, as células infectadas recebem uma mensagem que lhes diz que devem morrer para que o organismo do qual fazem parte possa sobreviver àquele ataque; mas as células vizinhas que não foram ainda infectadas recebem uma mensagem diferente, que as avisa do perigo eminente, e que as manda montar guarda e defender-se do presumível atacante. Outras células ainda (por exemplo, as células do sistema imunológico) recebem outras mensagens, nomeadamente indicações para atacarem e destruírem o invasor.

 

E o que acontece quando certas células ficam surdas ou decidem agir por sua alta recreação?

A falta de comunicação, seja ela entre células ou humanos, nunca foi reconhecida como uma ‘fórmula de sucesso’… E na realidade, do ponto de vista celular, a falta de comunicação é uma verdadeira tragédia! Apesar de termos aqui falado acerca da sinalização no contexto de uma infecção viral, a verdade é que tudo o que se passa dentro dos nossos corpos depende dela. Por exemplo, o indivíduo que se encontra face a um leão, e que sente medo e, por isso, corre, fá-lo porque, ao olhar para o leão, os receptores da visão traduziram esse ‘estimulo’ em sinais que são transmitidos ao cérebro. O cérebro interpreta o sinal e envia ele próprio mensagens. Por exemplo, a mensagem relativa ao medo é mediada por sistemas que utilizam os mesmos princípios que descritos no parágrafo anterior, mas que em vez de utilizar citocinas como mensagens, utilizam os neurotransmissores.

 

Quando comemos, os alimentos são degradados nos seus constituintes básicos (aminoácidos, açúcares, lípidos, etc) para que assim possam ser assimilados pelo organismo. Por exemplo, quando uma pessoa saudável come uma sandwich, os açúcares daí provenientes são rapidamente absorvidos dos intestinos para o sangue. Como demasiados açúcares simples podem ser perigosos para o nosso corpo, esses mesmos açúcares são rapidamente convertidos em substâncias que podem ser armazenadas e usadas de uma forma mais simples. No entanto, esta conversão depende da insulina que sinaliza de uma forma análoga aos IFNs. Os diabéticos, na sua grande maioria, não conseguem produzir insulina e, consequentemente, não conseguem utilizar os açúcares que consomem na sua alimentação. Antes da descoberta da insulina, a maioria dos diabéticos morria, à fome, no espaço de um ano, independentemente da quantidade de comida que ingerissem. Neste caso, o problema surge porque as células não são capazes de produzir a mensagem.

 

Na grande maioria dos cancros, as células cancerígenas têm profundos problemas no que diz respeito à sua comunicação, tanto em relação ao que ouvem, como também em relação aquilo que dizem! Ouvem pouco e falam muito!!! Dividem-se quando deviam estar paradas; não morrem quando deviam morrer, porque já não têm mais serviços a prestar ao organismo do qual fazem parte; carimbam-se umas às outras, sem terem recebido mensagens (ou seja, inventam mensagens!); exageram nos detalhes (e quantidades) quando passam as mensagens ao carteiro seguinte… Esta falta de cortesia no diálogo celular e no espírito de equipa é tão grave que, regra geral, quando uma célula deixa de ouvir as vizinhas, a própria célula decide cometer suicídio, utilizando um processo chamado apoptose [3], porque admite que algo de muito grave esteja a acontecer!

 

Tagarelice celular: um processo vital extraordinariamente complexo!

A tagarelice celular é muito mais complicada do que aquilo que foi aqui descrito… Tal como dissemos logo no início do artigo, as células vivem em comunidade e estão em permanente diálogo umas com as outras. Assim, uma célula tem várias vizinhas, das quais recebe diversas mensagens que deve transmitir ao ‘quartel general’ para que este possa decidir as atitudes a tomar. Isto inevitavelmente envolve a transmissão de novas mensagens, que irão ser recebidas e interpretadas não só pela célula onde a mensagem foi gerada, mas também pelas suas vizinhas. Para complicar este cenário, vários receptores diferentes utilizam os mesmos ‘carteiros’ e não é totalmente impossível ter situações onde duas mensagens diferentes, que são transmitidas por receptores diferentes, tenham que ser comunicadas concomitantemente. Neste caso, é possível que haja uma certa competição entre os ‘carteiros’ e é graças à perfeita coordenação desta dança de mensagens que a célula sabe o que fazer. Em condições normais, um determinado estímulo activa um determinado grupo de proteínas, que lhe é particular; ou seja, e simplificando, um ligando A, quando se conecta ao receptor A, transmite a mensagem A, e um ligando B, quando se conecta ao receptor B, transmite a mensagem B. No caso de células com mutações (alterações genéticas que dão origem a proteínas anormais, ou que resultam na falta de determinadas proteínas), o caso complica-se porque, para certas vias de sinalização, verifica-se que o ligando A quando se conecta ao receptor A pode transmitir a mensagem B, já que o contexto celular no qual está agora a operar foi alterado! Mas isto é uma história ainda precoce em termos científicos e que terá que ficar para uma outra altura…

 

Hoje sabemos que, apesar de a fosforilação ser a modificação de proteínas mais crítica, há também outros tipos de ‘carimbos’ que são utilizados de uma forma análoga. Conceptualmente, isto ajuda-nos a imaginar como a mesma proteína pode ter funções diversas, dependendo do estímulo que a gerou.

 

Com certeza não se vai admirar se lhe dissermos que grande parte dos medicamentos que tomamos (desde remédios para infecções como a gripe ou a SIDA, anti-depressivos, antidiabéticos, antiasmáticos, contraceptivos, etc, etc) interferem com a sinalização, tentado fazer com que células ‘endiabradas’, parem e escutem…

 

Ana Paula Costa Pereira

Licenciada e Doutorada em Bioquímica na Universidade de Cork (Irlanda); a efectuar um pós-doutoramento em ‘Transdução de Sinais’ no Cancer Research UK (antigo Imperial Cancer Research Fund), em Londres, Reino Unido.

 

[1] Costa Pereira, AP (2000) A Era do DNA? Biosofia 7: 43-47.

[2] Santos, B (2001) Imunologia: Conquistas e desafios. Biosofia 11: 35-41.

[3] Costa-Pereira AP (2001) Apoptose: uma questão de vida ou de morte! Biosofia 8: 37-40.

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