Biosofia nº 14

3.50

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VIDAS MAIORES

 

WAGNER, UM TITÃ DE FACHO ARDENTE…

Todos os génios são impulsionadores da Raça Humana. Quer disso tenham consciência ou não e, também, quer sejam apenas introspectivos (passivos) ou se tornem activos, neste caso partilhando com o colectivo a objectividade do seu génio, eles são, de facto, os corcéis de ouro que correm velozes pelos céus e puxam o pesado carro da humanidade. Levam-na a horizontes inexplorados, estimulam a sua sensibilidade e novos motivos de interesse – são, pois, os irmãos mais velhos desta nossa Espécie que, segundo aparenta, atravessa ainda a adolescência.

É certo (e hoje reconhecido pelas novas ciências afectas ao campo da Psicologia) que o ‘Inconsciente (1) Colectivo’ regista, colige e depois disponibiliza (qual banco de dados) todos os avanços – mentais e psicológicos – operados por todas e cada uma das suas unidades constituintes (as individualidades).

No curso da História, crescemos na interpretação de uma vastíssima gama de códigos singulares emanantes na Natureza (esclarecemos que, para nós, é uma premissa que ‘Natureza’ tem sempre a acepção de ‘Inteligência Universal’ ou, por outras palavras, a ‘Divindade Manifestada’). A humanidade sempre contou com grandes percursores nos mais diversos domínios.

Designadamente no que respeita às Artes, homens e mulheres verdadeiramente dotados captam significados expressos na forma de ondas tenuíssimas e etéreas, ocultas para a maioria de nós; cabe-lhes, então, a tarefa de plasmar (ou densificar) a beleza e a estética – ou seja, a intrínseca essência desses significados – fazendo-as corresponder em padrões ou em modos (mais) acessíveis para nós, para o nosso plano de apreensão. E eis, pois, as ‘obras primas’ – os mais excelsos motores de inspiração ao serviço do mundo, capazes de ajudar a elevar as consciências a patamares superiores de sensibilidade. Os intérpretes que as materializam são expoentes na pintura, na escultura, na arquitectura, na poesia, na música e, até, na engenharia, nas matemáticas, na astronomia, na medicina… – ramos considerados ‘das Ciências’ que, porém, não se podem dissociar da Arte. Talvez seja mesmo verdade que a Arte é a mãe de todas as Ciências!….

O verdadeiro artista esculpe, a pulso, as pedras palpitantes dos Céus – diáfanas mas ofuscantes, mudas mas exuberantes. Elas falam somente aos que venceram as mais duras provas. Alcandorando-se em certezas de realidade onde apenas se aparenta o vazio, eles sobem e conquistam arduamente cada átimo de talha suada pela substância divina.

Ser artista implica saber experimentar intensamente a dor. Para muitos, o toque da Glória é feito das lágrimas de um deus sem nome. Na verdade, a Natureza está em permanente dor de parto. Está em permanente acto de criação. É a comunhão vívida com ela, é a identificação com a sua dor gritante que faz de um homem um verdadeiro criador e um visionário (no sentido superior). Um tal homem é capaz de gerir, de guiar ou de influenciar os destinos dos outros homens, conduzindo-os para lugares, no tempo e no espaço, de mais luz, de maior júbilo, de mais e de maior plenitude.

1) Por convenção generalizada, assim denominado – o que, na nossa perspectiva, constitui uma expressão inexacta e pouco feliz.

 

O Infinito é uma promessa

Hoje tentaremos penetrar – um pouco – no universo Wagneriano. Não é que um tal expoente humano tenha sido o autor de algum universo; mas foi, sim, um visitante, de génio, num recanto do Universo que a todos nos era desconhecido. Ele teve a aptidão e o mérito – a sensitividade – de se poder elevar a alturas insondáveis de beleza e de esplendor, porquanto soube e pôde descer (interiorizar-se) e penetrar as profundidades mais recônditas do Ser. É, com efeito, necessário uma invulgar e intensa capacidade de concentração e subtilidade (aparentemente, antónimos), a ponto de nos tornarmos ínfimos – tão ínfimos que podemos esgueirar-nos e passar pela estreita porta que se abre ao Infinito. E só se encontra a Luz sonora e musical, os sons e as cores de cambiantes pródigos e ininterruptos – enfim, os contadores de segredos inaudíveis mas pujantes de sentido, de luz e de cor…

Richard Wagner era um sofredor. Necessariamente, como todos os génios, um sofredor atacado por múltiplas espécies de monstros, guardiães do desconhecido.

E é isso que explica a ocorrência paradoxal e frequente da combinação de um espírito de genialidade com facetas tortuosas, por vezes (inclusive) bem sombrias. O temperamento de Wagner era imprevisível; o seu sentido de ética, perturbador; o seu ímpeto para a contemplação do Belo, inexcedível; depois – e face a essa contemplação que a almahumana não pode empreender sem (por vezes) crestar – era um arrebatador arauto, um impulsionador para a Conquista e para a Epopeia humanas. É certo que, amiúde, os grandes e heróicos inovadores confundem as coisas, a significação grandiosa e amplíssima dos arquétipos que visionam, e reduzem o mito da heroicidade a um vulgar e mesquinho ‘cantão’ humano. É a senha dos nacionalismos: a perversão – infantil – dos Ideais. Num outro Plano (longínquo) de existência, os Ideais são entidades viventes; mas só os conseguimos pressentir e lobrigar reflectidos e distorcidos em múltiplos espelhos. Por isso, o perpétuo e digníssimo Ideal de aperfeiçoamento de tudo o que é vivente no Universo, frequentemente (no Reino Humano),  é transposto e delimitado nas estreitas esquadrias de uma herança temporal e cultural de um povo – de uma mera fracção da humanidade e não, como deveria acontecer, da Espécie-Humana-Como-Um-Todo.

Apesar disso, o que a Wagner foi dado contemplar, não está ainda ao alcance da maioria de nós e, certamente, muito mérito ombreava para tais Portas se lhe abrirem. Ele espelhou e projectou o sonho da Grandeza e Enobrecimento humanos na saga de um Povo ou de uma Raça – os teutónicos. Pela imensa e transbordante beleza e carga simbólica de um todo maior, é nosso mister (de todos, herdeiros da sua obra) desejar que o(s) mito(s) que exaltou e enalteceu nas suas extraordinárias composições se converta(m) num símbolo de Universalidade. E aí, sim, residirá perenemente a sua força, o seu valor e, em última análise, o seu superior e transcendente propósito, de que ele foi intérprete, quiçá sem o compreender. A sua obra é e será uma fonte inesgotável de inspiração para o que de mais belo, mais verdadeiro, mais sábio e mais justo a humanidade tem por missão assumir e incorporar.

 

O processo de criar

A música é aquela, entre as Artes, que mais abrangente e actuantemente comunica com as massas, mesmo as mais heterogéneas. Não é necessário cultura ou erudição para se ser tocado pela música. Até os animais – e até as próprias plantas – parecem influenciar-se positivamente com a sua manifestação.

Poucos são os depoimentos dos grandes, dos autênticos mestres nos domínios das Artes, no que respeita ao processo da sua “inspiração criadora”. Quanto a Wagner, contamos com alguma (preciosa mas esparsa) matéria, oriunda muito particularmente dos testemunhos da sua segunda esposa, Cósima, coligidos numa espécie de diário (1) entre os anos de 1869 e 1883. Houve de decorrer um século para que este trabalho inestimável fosse reabilitado e reestruturado em 5 volumes, pelas edições canadienses Gallimard.

Datam da época da sua redacção os acontecimentos mais determinantes que, por fim, viriam a viabilizar o êxito da obra de Wagner, bem como a sua promoção e divulgação ao mundo artístico vigente e a sua projecção ao futuro: uma, o súbito e inesperado devotamento do monarca Luís II, ao tempo um jovem de dezanove anos que, tomado de verdadeiro êxtase e admiração pela sua obra, lhe rendeu todos os tributos e honrarias, e pôs à disposição todos os meios de protecção financeira e artística. Por outro lado, o apoio incondicional, afectivo e psicológico, que lhe votou Cósima e que durou até ao final dos seus dias. Cósima era filha do grande compositor Liszt que, também ele, fora um fiel amigo e cultor do génio de Wagner (tristemente, não encontrando neste o reconhecimento e a retribuição da lealdade que seriam devidos). Era também a esposa de Hans von Bülow, excelente pianista e chefe de orquestra, protegido de Liszt e, enfim, discípulo e outro admirador incondicional de Wagner e que manteve a sua hombridade e atitude benévola para com ele, mesmo após o doloroso desenlace com Cósima.

O período mais significante e frutuoso da vida de Wagner decorreu ao lado da segunda esposa – o seu ar vital e o amor tardio mas plenamente vivido – numa esplendorosa mansão em Triebschen, nas margens do lago de Lucerna.

1) Tratar-se-ia mesmo de um ditado autobiográfico, que se sustenta ter sido, em certa medida, romanceado por Cósima, com o fito da  promoção legendária futura do seu marido. A adoração desta por Wagner tocava as raias da idolatria, se bem que salpicada por terríveis neuroses depressivas e acessos de sentimentos de culpabilidade, devidos ao facto do seu abandono de Hans e das duas filhas que com ele tivera.

 

O seu berço e a sua evolução

Em Maio de 1813 nascia Wagner em Leipzig, cidade alemã com raízes históricas curiosa e repetidamente associadas à Arte. Na mais tenra infância manifestava um carácter já perfeitamente direccionado e uma curiosidade vigorosa mas selectiva. Muito cedo se começou a interessar pela tragédia grega, pela mitologia e pela filosofia e, com treze anos apenas, traduziu os doze primeiros cantos da “Odisseia”. Lia Shakespeare e conhecia de cor a ópera “Der Freischütz”, de Weber (a quem dedicou genuíno afecto e rendeu vívida homenagem até ao final dos seus dias). Na mesma idade, crescentemente empolgado pelos legados de Sófocles, Schiller e Göethe, arroja-se na sua primeira criação: um drama no qual os quarenta e dois personagens sofrem uma morte trágica, o que, para dar sequência à obra, obrigou o pequeno sonhador a fazê-los reaparecer como fantasmas. Logo depois, concebe um outro drama, em verso, “Leubal e Adelaide”.

Aos quinze anos, é levado pela primeira vez ao Gewandhaus, onde ouve as sinfonias de Beethoven. Absolutamente rendido, decide-se de imediato pelo empreendimento da composição: inicia-se com uma sonata, um quatuor e uma ária, e segue com o plano de uma ópera e esboça uma pastoral (esta, inspirada num trecho de Göethe e na Sinfonia Pastoral de Beethoven).

 Datam de 1832 as sete composições para o “Fausto” de Göethe, não tendo Wagner completado ainda vinte anos. Logo após, escreve o poema e o primeiro número da música para uma ópera, intitulada “As Bodas”.

De certa maneira, a idade dos vinte anos é um marco para o jovem Richard. Com a sua precocidade e o já incontroverso valor, com uma natureza arrebatada mas extremamente envolvente, cativou a Direcção do Teatro de Würzburg e tornou-se ensaiador-chefe dos solistas e dos coros. Naquela cidade escreveu a sua primeira ópera romântica, denominada “As Fadas”, e, no ano seguinte, uma outra, “A Proibição de Amar”, ópera que a censura de então fez mudar o nome, ficando “A Noviça de Palermo”.

 

A música fertilizada pela poesia: uma tónica determinante na sua obra

Nessa época, assiste a uma extraordinária interpretação da cantora Schröeder-Devrient, em “Fidélio”, com quem teve a oportunidade de privar de perto: foi ela quem lhe transmitiu noções indeléveis e fundamentais sobre a mística da conjunção entre a Poesia e a Música, e que o iniciou na mais íntima e subtil auscultação da sensibilidade artística de Beethoven. Todo o potencial artístico de Wagner acordou, então, da sua latência… Ainda nesse ano, é estreada a sua “Sinfonia em dó maior”.

O próximo passo é a outorga do cargo de regente da Orquestra do Teatro de Magdeburgo. É então que conhece a actriz Minna Planer, de quem se enamora, com ela vindo a casar em 1836. Seria uma união desolada, cujos primeiros tempos, vividos na maior precariedade, se revelam uma desilusão. Minna, muito jovem, cede à corte de um rico negociante e abandona o lar, levando consigo Natália, a filha do casal. A crise parece reversível e ambos se empenham na reconciliação; mas a instabilidade manter-se-á, o bom entendimento e a vida em comum não sendo duráveis, principalmente devido aos sucessivos motivos de suspeita da volubilidade de Minna e aos consequentes e exacerbados ciúmes de Richard.

Porém, no trabalho, Wagner prossegue incansável, lutador e cheio de energia. Lê “Rienzi”, de Lord Lytton, e toma-se de entusiasmo, voando em sonhos de execução para este novo drama em que mergulha, inspirado. Consuma dois dos actos de “Rienzi” e projecta abalançar-se para Paris e Londres. Nesta fase, é de novo visitado por Minna, de quem se apieda – perdoando-lhe as infidelidades -, e decidem-se a avançar para a sonhada aventura pela Europa. Sem alicerces nem recursos financeiros seguros, no auge da sua juventude algo inconsequente, partem para Londres, embarcando num veleiro. E quis o fado que uma enorme tempestade desviasse o navio mais para norte arrostando-o e fazendo-o ancorar nas costas norueguesas. Nos dias dessa atribulação, ouviu Wagner, dos marinheiros, uma lenda nórdica, cantada, que constituirá a semente do que mais tarde será “O Navio Fantasma”.

Segue-se um período de grande aridez e muitas privações, no qual Richard e Minna chegam a conhecer a fome. “Rienzi” está ultimado; no entanto, todas as portas se fecham e a descrença ou a indiferença são uma constante. No Inverno de 1839/1840, a duras penas, Wagner termina uma grande Abertura de Concerto sobre “Fausto”, que apenas 15 anos mais tarde virá a público.

Sem grande alento nem esperanças de ali encontrarem melhores dias, regressam à Alemanha em 1842. Um volte-faceparece agora acenar: em Dresden, “Rienzi” é montado e levado à cena, obtendo um extraordinário sucesso. Igualmente em Dresden, seguiu-se “O Navio Fantasma”, quase com idêntico sucesso. O casamento com Minna, esse, prossegue fictício, ambos alargando as distâncias que os separam.

Em 1845, Wagner dá as últimas pinceladas em “Tannhäuser” (2), cujo projecto fora esboçado, anos antes, em Paris. Contudo, e para sua grande surpresa, esta não cativa o gosto do público, que aplaudira as suas outras duas realizações. As pessoas não estavam preparadas pela aquela linguagem musical inovadora e exótica. Inabalável e fiel a si próprio, decide prosseguir com a linha que traçara e, pacientemente, educar o auditório. Trabalha agora, com afinco, em “Lohengrin”, começado algum tempo antes, praticamente em simultâneo com a “Tannhäuser”. Mas esta voltará a receber a incompreensão e a resistência do público e da crítica. Aos olhos e aos ouvidos destes, Wagner surge como um pedante, um alucinado prestidigitador, um político revolucionário e perigoso ou, ainda, um traidor das mais nobres e conceituadas tradições. Para acicatar ainda mais a animosidade da opinião que se generalizava, e no meio da agitação política de então, na qual a Alemanha havia grassado, Wagner tornara-se ainda mais notadamente um activista político acalorado e incómodo.

É atacado por todos os lados, a sua vida privada sendo exposta “a nu e a cru” em parangonas difamatórias que empolavam e, por vezes, inventavam “os seus vícios”, “as suas dívidas”, “as suas extravagâncias”, “os seus luxos”. Assim, foi forçado a empreender a fuga, escolhendo a Suíça como refúgio.

Nos anos que se seguiram, contou com o apoio de um abastado casal de sobrenome Laussot. Com efeito, o Sr. Laussot propusera-se atribuir-lhe uma pensão que lhe permitiria prosseguir, sem maiores aflições, a entrega à sua arte incomparável. Depressa, contudo, Wagner se envolveu amorosamente com a senhora Laussot, relação essa (e o tão necessitado abono) que teve os seus dias contados, ao ser descoberta pelo seu mecenas.

O exílio durou cerca de doze anos e, nessa fase da sua vida, o músico conheceu a instabilidade amorosa, contando-se muitos os casos das suas relações ocasionais ou outras menos fortuitas. Pode dizer-se que esse não foi um tempo de que se pudesse orgulhar. Completamente desequilibrado emocionalmente – perante as muitas dificuldades e a incompreensão generalizada sobre a sua peculiar natureza e as suas idiossincrasias -, deixou-se afundar e tomar por uma espécie de arrogância fleumática e de azedume por tudo e com todos. Nesse período obscuro, armava-se com dardos de ironia, que cultivava ao extremo.

Nestas deambulações, estabelece relações com um outro casal possuidor de considerável fortuna, que lhe abre generosamente as suas bolsas. São eles Otto e Matilde Wesendonk. A sua admiração e afeição por Wagner eram completas e, para promover a comodidade necessária à prossecução do seu talentoso trabalho, não olharam a meios. Inclusive, adquiriram um chalé num terreno contíguo ao da sua própria propriedade, para que nele residisse Wagner. E o inevitável uma vez mais aconteceu: desta feita, o amor por Matilde não era uma simples atracção banal, como tantas outras que lhe precederam. Matilde parece ter sido, com efeito, o grande, grande amor da sua existência – malogradamente, destinado a uma vida fugaz. O desenlace e a dor propagada aos três protagonistas desta triste história foram ruinosos, demolidores.

2) A lenda de Tannhäuser, igualmente chamada “O Torneio dos Trovadores”, é um hino ao Amor. O Torneio dos Trovadores proclamava a “Liberdade fundada na Justiça” e, para tanto, é ali aludido, como instrumento da sua funcionalidade, algo como a “lei do karma”. A mensagem subjacente do drama é a promoção do Amor em detrimento da soberania das paixões inferiores; vemos, pois, desenrolado o tema do amor dos sentidos que precede o amor das almas pelas almas. Nesta lenda, protagonizada por Tannhäuser e por outro personagem, Wolfram von Eschenbach, ambos enamorados por uma mesma donzela, o primeiro é a representação simbólica da natureza passional e, o segundo, a evidência da natureza superior ou espiritual, aquela que todos nós (peregrinos, que somos), um dia, assumiremos em plenitude.

 

Uma visão mística e grandiosa do mundo

“O Ouro do Reno”, “A Valquíria” e os dois primeiros actos de “Siegfried” (3) vêm a ser concebidos sensivelmente na mesma época de “Tristão e Isolda” e “Os Mestres Cantores”. Agora, em 1869, ele encontra-se no estreito e alucinante passadiço que separa a composição do 2º e do 3º actos de “Siegfried”. Uma enorme e fervilhante tensão dele se apodera.. “O Anel dos Nibelungos” (4) (3º dos actos) e todo o “Crepúsculo dos Deuses” estão em fase iminente de criação.

Nesta etapa de grande elevação e arroubo, e de enorme pujança criativa, Wagner extraía a seiva do mito cada vez com maior e mais lúcida consciência, fazendo-a corresponder em acordes – ora maviosos ora vibrantes e empolgantes -, que incitam e transportavam as gentes ao Fogo da Procura… E o maior dos símbolos, na sua obra vivificado, é sem dúvida o símbolo do Graal – espécie de leitmotiv das esferas subjectivas (ou esotéricas), que congrega todo o Mistério da existência humana e, bem-assim, da sua gloriosa finalidade. O convite para a “Demanda do Graal” é a mensagem empolgante que a todos nos lega.

Com efeito, percutindo através de todas as memórias de todos os antepassados – memórias imperecíveis que em nós vivem latentes, aí encontrando continuidade -, a Música Celestial (5) (de que apenas muito poucos puderam trazer e materializar alguns fragmentos) é o motor subliminar e invisível que nos transmite o incentivo para a Conquista e para o Progresso espirituais. Como dissemos no início deste apontamento, Wagner foi, indubitavelmente, um desses privilegiados artífices-anunciadores que ajudam a acordar em nós essas memórias adormecidas, fazendo palpitar as nossas almas.

Wagner amadurecia mais e mais. O seu génio criativo, tão expressivo na concepção de óperas que fundou sobre mitos como o “Parsifal”, o “Anel dos Nibelungos” ou o “Tannhäuser”, marca uma etapa totalmente nova na história da Música. Uma obra carregada de fulgor e de simbolismo, arrebatadora e palpitante até às lágrimas, eis o seu legado vitorioso. A personalidade de Wagner, contudo, é extremamente difícil – evasiva e fugidia até, diríamos nós – de descrever. Tinha, como observámos, demasiadas complexidades e algumas incómodas fricções e incompatibilidades com o mundo externo e profano – a capa das coisas (a seu ver) – mas era dotado de um veemente e intenso amor pela Humanidade: de uma forma abstracta, e incompreensível para muitos psicólogos analistas convencionais, que decerto a negariam “por inexistente”; porém, de modo nenhum menos autêntica; ao contrário, o que ele amava verdadeiramente era o ser real que subjaz a todos os homens de carne. Por isso, os Ideais… e por isso a imperiosidade, tão genuinamente assumida e tão incrivelmente missionária, de inflamar os corações, tendo por instrumento a sublimidade da sua arte.

3) Siegfried significa “o vitorioso”, “o vencedor”, “o buscador da verdade” (em alemão, Sieg significa Vitória). Siegfried e os seus pais, Siegmund e Sieglind, são os primeiros símbolos representantes da 5ª Raça-raiz..

4) Esotericamente, o símbolo subjacente a este anel respeita ao “ovo áurico”, melhor dizendo, ao conjunto dos envoltórios áuricos correlativos a cada Plano do “Quaternário inferior”. Será o casulo em que se envolve a alma durante o longo período das suas sucessivas incursões aos mundos inferiores. Durante essa etapa do seu percurso evolutivo, a Humanidade delimita um círculo, um anel em torno de cada unidade ou centelha, que lhe tolda a visãode unidade. O individualismo extremo é o culminar ou o vértice dessa descida aos “mundos abismais”. Nibelungos significa os “filhos da Bruma” (niebel = bruma, e ung = filho).

5) Também reconhecida ou denominada por “Música das Esferas”.

 

O seu estranho carácter 

Wagner crescera devorado pelos sonhos de grandeza e de beleza que contemplava (visionava) extasiado mas que se esfumavam cá em baixo, incongruentes, neste mundo sórdido, surdo, cego e sulcado de fealdade.

Na juventude, o seu sentido estético desenvolvia-se a par e passo com a sua natureza e o seu carácter ainda pouco estruturados. Um tal sentido (quase autónomo), impunha-se-lhe com exigências tumultuosas. Muitas são as descrições do seu temperamento como “caprichoso”, por vezes “algo tirânico”: contudo, para ele, na vida real, cada elemento e cada atributo tinham o seu lugar e deviam estar presentes como peças vivas, em seu redor. Deles, e do cenário do seu conjunto, sentia necessidade irresistível, especialmente em determinados momentos. A harmonia manifestava-se de muitas maneiras… e o conforto, o bem estar, e até uma certa opulência e bizarria não eram coisas “desprezíveis”. De facto, a descrição decorativa de alguns dos seus “habitats” dificilmente poderia ser alvo de justos ou adequados comentários: as suas salas-de-estar fervilhavam no meio de rendas e de paredes forradas de tecidos faustosos, brilhantes e com um colorido… de estarrecer quaisquer outras sensibilidades que não a sua: escarlates, combinados com rosas fucshia ou amarelos… Noutros recantos e alas, cetins brancos, ricamente festonados, recobrindo os tectos, combinando com sedas multicores nos imensos e belamente estofados cadeirões; nas janelas, tules brancos, singularmente apanhados em “mirabolantes” cachos…

Indubitavelmente, o mundo em que vogava era muito diferente e estava em total desconformidade com estoutro – muito mais duro e opaco, e o único conhecido, sentido e palmilhado pela maioria. Deste modo, ciente do abismo que o separava da mediocridade vigente, da exígua sensibilidade que o rodeava, aos olhos de muitos aparecia como demasiado exigente, seguro de si, caprichoso e egocêntrico. Mas Richard, quase singelamemte, considerava que a Arte que vivia em si e de que era servidor era uma Dona – uma Dona celeste – a que ninguém teria o direito de se escusar a servir. Por isso, se era certo que ele não capitulava perante as suas devastadoras exigências – as noites em claro, a entrega febril, por vezes quasemortal, a que esta o expunha (quando lhe concedia em deixar entrever para lá dos rendilhados e ondulantes recortes das suas “sete vestes”… ou quando consentia em lhe deixar soerguer alguns dos místicos véus com que se encobria…) –, então, também os seus amigos que, através dele (sem dano e sem consumição pessoal), beneficiavam da visão daquele divinoperfume, tinham por dever pagar algum tributo. A instabilidade adveniente de um pequeno desconforto físico ou emocional eram suficientes para lhe dificultar, sofridamente, a titânica tarefa da concentração criativa. Sôfrego e impulsivo, desorganizado nos equilíbrios da sua vida mundana mas desconcertantemente cativante, Wagner era senhor de uma natureza magnetizadora. Deste modo, com a naturalidade das suas irresistíveis características, permitia-se pedir – e, por vezes, exigir, sem rodeios – empréstimos financeiros avultados que nunca vinha a cobrir.

 

Ecos do paraíso dos deuses…

Algures, Cósima anotou no seu diário: “Richard diz-me que no momento de criar, a dificuldade não lhe vem da escassez das ideias mas, sim, da necessidade de se conter, de se limitar: demasiadas coisas, em simultâneo, lhe acorrem ao espírito. O nervosismo e a inquietude advêm do facto de as dever seleccionar e ordenar”.

É curiosa e plena de significado esta confidência,. Na verdade, o espírito “criador” contempla e assiste a uma realidade “a um só tempo” – tão vasta e abrangente, que não é possível expô-la e delimitá-la sequencialmente (pelo menos, sem a desvirtuar ou corromper). No mundo temporal, somos compelidos a comunicar de “forma linear”, o que constitui uma distorção da realidade (ou seja, a comunicação linear e sequencial não pode expressar o que transcende esta nossa dimensão meramente “tridimensional”, este nosso “espaço comprimido”…). Ainda assim, o reflexo possível do que Wagner contempla nas Alturas e que, a duras penas, converte numa obra humana, é suficientemente cheio, belo e impactante para tomar de êxtase as nossas ainda rudes e roufenhas fibras nervosas.

Escrevia Wagner: “… ei-la, a minha atmosfera está prestes a materializar-se. (…) Trabalho de maneira perfeitamente febril… passo por algo semelhante a estertores; todo o meu corpo se convulsiona…” E, noutra ocasião: “eu nada posso criar na tranquilidade”. Particularmente, durante a fase da composição do segundo acto do “Crepúsculo dos Deuses”, Wagner e Cósima corriam uma espantosa sucessão de noites sem pegar no sono. De facto, é possível imaginar que uma tal música não lhes poderia dar tréguas e que um estado constante de exaltação era o seu próprio alimento e algo semelhante ao “sonambolismo” se substituía ao descanso. É, sem dúvida, uma realidade que em todo o acto de criação se faz necessária uma intensa e continuada tensão… Confidenciava ele, ainda: “o que eu posso achar de singular na minha arte, por exemplo, é que considero cada detalhe como um todo e que eu não determino que isto ou aquilo se vai seguir, ou que é necessário fazer assim ou doutro modo, introduzir tal ou qual modulação… Eu penso simplesmente: ‘… o resto se encontrará a si próprio’. Se assim não fora, eu estaria perdido. E, entretanto, eu sei que obedeço ao traçado de um plano ‘inconsciente’…”

 

A imortalização do talento e da originalidade de Wagner

Em 1872, Richard e Cósima mudam-se para Bayreuth, onde, em estrita homenagem cultural a Wagner, se projecta a construção megalómana do Teatro Festspielhaus. Com a sua edificação e com o seu esplendor, sonharam, em conjunto, durante longos anos, Wagner e o seu protector soberano, Luís II. O Teatro das Festas – o templo da arte alemã – foi, efectivamente, construído para eternizar a glória do mestre. Em 13 de Agosto de 1876 abriu as suas sumptuosas portas para a representação, em estreia, de “Anel dos Nibelungos”. Na Terra, foi um acontecimento de magia…

A sua sustentação económica, contudo, implicava uma exorbitância longe da viabilidade executiva das mais bem intencionadas e recheadas bolsas. Apesar da congregação de subscritores e da sempre fiel generosidade do rei, o faustoso teatro teve de suspender as suas actividades. Wagner pôde unicamente vê-lo funcionar duas vezes: na inauguração, com a Tetralogia, e seis anos depois, com a representação de “Parsifal” – obra-prima cuja excepcional, exultante concepção o tinha absorvido por completo nesse interregno. O herói, Parsifal, é o protótipo de eleição divina, que, mercê das suas virtudes conquistadas, adquire o direito (reservado a todos os homens puros e, como ele, sublimados) à visão e obtenção do Graal, ocultado e interdito aos profanos no tabernáculo de Montsalvat. A partitura de orquestra é soberba. “Parsifal” é o pináculo da sua Arte!

Isabel Nunes Governo

Vice-Presidente do Centro Lusitano de Unificação Cultural

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